D. Diogo de Sousa marca a transição da Braga medieval, cintada nos
seus limites feudais e no alcance imediato da sua catedral, para a urbe
moderna, aberta, interactiva com o seu território envolvente e com o mundo.
Diário do Minho - 31 de outubro de 2016 |
Retomando a evocação do arcebispo mais notável do espaço
público bracarense, que nos remete para a mundividência do renascimento
português, diríamos que somente a sua referência pretexta um turbilhão de
reflexões e uma encruzilhada de saberes universais, que vão do cristianismo aos
descobrimentos marítimos; da arte ao urbanismo; da história das mentalidades à
geografia; do advento da modernidade ao mundo contemporâneo. D. Diogo marca a
transição da Braga medieval, cintada nos seus limites feudais e no alcance
imediato da sua catedral, para a urbe moderna, aberta, interactiva com o seu
território envolvente e com o mundo.
Apresentadas, no último texto, as principais linhas
infra-estruturais da sua obra urbana, como as vias, as praças e o abastecimento
de água à cidade, a obra de D. Diogo (1505-1532) ficaria igualmente marcada
pelo que hoje chamaríamos de criação e reestruturação de equipamentos
colectivos. Neste capítulo, começaríamos pelo privilégio que deu ao
desenvolvimento das actividades mercantis e à reorganização administrativa do
concelho. Com essa finalidade, mandaria erguer um sistema de alpendres junto às
principais portas da cidade, para acolher os viandantes e os almocreves, como
também, enquanto medida reflexa, reformaria as alfândegas destinadas a taxar os
que vinham vender os seus produtos à cidade. Ao nível dos mercados, regularizou
a venda do pescado, junto à porta nova; definiu os açougues, junto à Sé; e
disponibilizou a venda do pão, precisamente face ao parvis da catedral,
nos baixos alpendrados da casa da Câmara, que concluiu, tendo para o efeito
expropriado quatro casas. À sua prelatura ficou associada ainda a renovação das
leis municipais, das quais resultou o equivalente a um conselho municipal.
Igualmente nos sectores que hoje chamaríamos da saúde, da educação e da
cultura, D. Diogo inscreveria algumas das matrizes fundacionais mais
significativas. No caso da instalação do Hospital de São João Marcos (1508),
dando continuidade à obra antes iniciada, proporcionaria a sua conclusão,
transferindo ainda a gafaria para S. Lázaro; no caso dos Estudos Públicos,
lançaria as suas fundações (1531), junto ao Largo de São Paulo, não que sem
antes tivesse criado uma livraria junto à Sé.
Naturalmente que a simples nomeação de todas as obras que
são atribuídas ao seu mecenato, tal foi a sua diversidade e quantidade,
implicariam uma fastidiosa listagem de
referências, que transcenderia a finalidade deste sumário. Isto tudo se
incluíssemos os bens que mais directamente estavam sob a sua tutela, como os
locais de culto, templos, capelas, designadamente, no que toca à sua edificação, reforma e ampliações. Mais a mais
se descrevêssemos os efeitos da sua acção ao nível da organização da própria
igreja, das reformas da clerezia e das práticas sacerdotais, da arte sacra,
etc.
Dentro do registo dos conteúdos fundamentais que nos
propomos para este resumo, relevaríamos as intervenções perpetradas na
Misericórdia, que lhe é atribuída (1513), já que fundara a do Porto quando aí
foi seu Prelado; e a remodelação do paço arquiepiscopal, no qual destacaríamos
o arranjo do largo fronteiro e a criação de um jardim interior, de feição
palaciana, bem ao gosto da época. Aliás, releve-se sobre o último a importância
referencial que deverá ter tido no arranjo do logradouro de algumas das mais
vetustas casas das imediações. Para tal, basta observar a vista de Braga
do atlas de Braun (1596) para compreender a sua importância na morfologia
urbana local.
Por fim, não podemos deixar de salientar as obras de
arranjo dos espaços públicos. Praticamente toda a cidade sentiu o efeito desse
intervencionismo generalizado durante este período. Desde a implementação de
diversas cruzes frente às portas da cidade e nos principais cruzamentos, até ao
exemplar arranjo associado à construção da octogonal ermida de Sant’Anna
(actual av. Central), constituída por lajes com epigrafias latinas e cintada
pelos marcos miliários que D. Diogo mandou recolher das velhas vias romanas que
demandavam Bracara Augusta. Esta iniciativa teve um vasto alcance simbólico, já
que de algum modo traduz a introdução em Braga de uma consciência humanista e
patrimonial das origens romanas da cidade, que passaram a constituir um dos
seus principais marcadores identitários de longa duração.
Plenamente consciente da dimensão e do alcance da sua
obra, D. Diogo, já nos últimos anos da sua vida, evocando o que Octaviano
declarara ter feito por Roma, quando a achou rústica, de barro e sem templos
nem gente nem edifícios (…) a [tinha] feita assim de edifícios
públicos como privados, continuando D. Diogo, com acrescentamento de
muito povo e número de mercadores e trato e oficiais das melhores cousas do
reino. Daí que, ainda hoje, a compreensão da cidade de Braga só faça
sentido conhecendo-se de antemão qual foi a obra
urbana de D. Diogo de Sousa.
Miguel Bandeira
Para saber mais:
- "D. Diogo de Sousa: da cidade medieval à urbe aberta"
- “D. Diogo de Sousa, o urbanista – leituras e texturas de uma cidade refundada”
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