INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2023 comemorou 46 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ENTRE ASPAS: "AFORISMOS A RESPEITO DE BRAGA E SEU PATRIMÓNIO"


Nota explicativa: a palavra aforismo tem, pelo menos, três significações: (1) máxima que contém um preceito de cariz moral; (2) frase concisa sobre um princípio de alguma ciência ou arte; e (3) enunciado breve, em tom peremptório e denso de sentido, que pode ser compreendido sem recurso a um outro texto, baseado num estilo fragmentário associado a uma certa escrita filosófica. As obras de Friedrich Nietzche são um reconhecido modelo deste terceiro sentido. Mas aqui o propósito é muito mais despretensioso e apenas se pretende suscitar ou até provocar uma reflexão simples sobre a complexa problemática que Braga sempre foi vivendo enquanto cidade sujeita aos ventos da História. Como crescer e renovar-se sem perder a configuração e o património construído legado pelos habitantes antepassados?

As cidades são organismos vivos articulados com o conjunto nacional a que pertencem e sujeitas à mudança da forma e do conteúdo acumulado.

 Braga cidade conservadora? Até quando? Derrubadas as muralhas medievais a partir do séc. XVIII, o Progresso passou a entrar pelo Arco da Porta Nova, a princípio com alguma timidez, mas foi-se tornando mais e mais afoito até à actual cenografia do “centro histórico”, espaço de visita e de despesa de turistas.

A cidade romana sobrevive em recintos salvos a duras penas, na colina de Maximinos, nas fundações de alguns edifícios dessa encenação urbanística designada por “centro histórico”, que existe como “montra” para turista ver; a Braga Barroca sobrevive nas Igrejas que o camartelo municipal do início de novecentos não destruiu.

O bracarense de hoje (residente ou nativo) parece ainda mais distraído que o de gerações anteriores, relativamente ao que de antigo há na sua cidade.

A maneira como bracarenses e portugueses, em geral, lidam com o antigo revela um paradoxo interessante: por um lado, conservam-se hábitos, preconceitos, traços culturais comportamentais e profundos; por outro, sacrifica-se a herança do passado às modas atrasadas que nos chegam, que copiamos, com bastante frequência, de forma sempre muito provinciana e leviana.

Será que a sensibilidade para com a defesa e preservação do património exige como condição sine qua non níveis de instrução e de literacia elevados? Um cidadão pouco ou medianamente instruído não consegue perceber valor no que fizeram os antepassados (herança comum que recebemos)? Património e literacia têm uma relação óbvia, que a educação formal pode/e deve incentivar; mas tudo o que se tem feito até hoje junto das camadas infantis e juvenis da sociedade pouco efeito tem provocado, provavelmente pelo facto de, a esses processos, não ser atribuído significado em contexto local. Por isso mesmo, é urgente uma reflexão muito profunda e verdadeiramente interdisciplinar no que diz respeito a educação patrimonial e ambiental.

Será que conservar uma casa antiga exige muito dinheiro? Exige, isso sim, bom senso e determinação em querer conservá-la sem a reduzir apenas à fachada, com um projecto de arquitectura que assegure conforto pleno para que nela se habite, mas sem destruir os elementos da arquitectura original. O fachadismo é expressão do novo-riquismo, gastador e míope. Haverá dúvidas?

Um imóvel antigo, com divisões pensadas para uma família algo extensa, tem de ser destruído no seu interior para que possa ser oferecido, numa escala especulativa de oferta de habitação nova, com vários T0, T1, T2, ... ?! A máxima rentabilização do investimento torna inevitável essa prática construtiva que invadiu o parque imobiliário antigo da cidade, desta e de muitas cidades e vilas deste país. Mas esta ganância parola esbarra com o que se pratica noutros países europeus, onde uma ocupação rentável não destrói o que foi sendo acrescentado, ao longo do tempo, em cada edifício. Pelo contrário, valoriza o edificado e, também, as cidades que sabem manter esses testemunhos do passado que as torna genuínas.

Há muito que se entende o Património como algo construído pelo Homem ao longo do tempo e algo natural que deve escapar à destruição humana. A harmonia dos dois serve de indicador de qualidade de vida num país.

Os políticos locais que representam, através do voto, os seus concidadãos, não podem, no exercício de funções políticas, esquecer esse vínculo e exercer o Poder vergados aos interesses dos promotores imobiliários e dos inconfessados interesses económicos assumidos para além da ética.

Se os autarcas falham em cuidar do Bem Comum, muitas são as razões explicativas dessa realidade: é bem verdade que nem sempre se encontra, nos Municípios, pessoal técnico bem preparado e/ou motivado para os ajudar a dar a melhor resposta aos cidadãos e a promotores imobiliários, impedindo abusos, distorções e atropelos ao cumprimento da lei. O regulamento do Centro Histórico, recentemente sujeito a discussão pública, foi esquecido por qualquer motivo que desconhecemos e estranhamos.

Vale a pena mantermo-nos na luta em prol do Património? Se olharmos para os resultados obtidos – demolição de edificado de valor patrimonial, inércia do município e do Estado face a monumentos que se encontram em derrocada, parecer favorável do município e da DRCN face a obras que colocam monumentos em risco, etc.- a resposta é não. Se olharmos para a quantidade de cidadãos que se empenham local e nacionalmente nesta lide, atuando junto das entidades a quem compete a defesa deste bem comum, a resposta é, também, não!

E então, por que motivo continuar a luta em defesa do património? Porque o ser humano é estruturalmente um animal mimético, activado por necessidades básicas, primárias e destrutivas, mas também heterogéneo e imprevisível na forma como reage aos estímulos do Mundo. E ainda bem que continua a ser assim apesar de tudo.

A literacia cultural, ambiental e cidadã, tem sido o garante da defesa do interesse público, assegurando uma actuação persistente, por parte de alguns, face a problemáticas relativas ao património, ambiente e paisagem. A literacia abre portas a uma acção cidadã por parte de novas gerações que, tudo indica, começam a reconhecer valor aos recursos genuínos de cada cidade ou território, herdados do passado.

Se a educação cidadã em curso nas Escolas, no âmbito do atual paradigma educativo, valorizar dinâmicas centradas no contexto local, então esperamos que, em breve, as decisões relativas ao património, ambiente e paisagem sejam devidamente escrutinadas, com impacto nas eleições, e que a Lei do Património seja, finalmente, o suporte para as decisões locais e nacionais.

sábado, 8 de janeiro de 2022

ENTRE ASPAS "O mandato político do património"

O ano novo inicia-se praticamente com as eleições legislativas. Um novo ciclo político, seja quais forem os protagonistas que os eleitores escolherem, vai agora iniciar-se. É a altura certa para que se definam as prioridades que o novo poder político deve assumir em matéria de património.

Em primeiro lugar, no horizonte de quatro anos, a tarefa decisiva do poder democrático em matéria de preservação e defesa do que é de todos deverá ser a da preservação desse património comum da humanidade que é o ambiente sustentável. A degradação das condições climáticas, por efeito do aumento do efeito de estufa associado a uma economia assente na libertação de carbono para atmosfera, tem seguido um curso imparável, com consequências catastróficas do ponto de vista do aumento da temperatura média do planeta, do degelo das calotes polares e crescimento dos oceanos (maior volume de água), do alagamento nas terras ribeirinhas, do incremento de fenómenos atmosféricos como recordes de ciclos de calor, pluviosidade extrema, intensificação das tempestades e aumento de frequência de calamidades naturais associadas. A bondade dos programas políticos a apresentar aos eleitores deverá ser medida antes de mais, a este respeito, pela qualidade das medidas apresentadas para a descarbonização da sociedade e para o desenvolvimento de energias renováveis. Sendo certo que as questões ambientais exigem medidas transnacionais – o fracasso das cimeiras do clima, como a recentemente realizada em Glasgow, não eliminam a imperiosidade dessas medidas –, a nível nacional medidas ambientalmente sustentáveis são objeto de decisão política inadiável: ampliação dos transportes públicos não alimentados por combustíveis fósseis, como o comboio e os autocarros elétricos; encerramento das centrais elétricas alimentadas a carvão ou nafta; desenvolvimento de formas alternativas de energia, eólica ou solar; proteção e regeneração das fontes aquíferas; apoio à investigação para a transformação da produção económica; mudança do paradigma do desenvolvimento a qualquer custo pelo do equilíbrio ambiental.  

 Em segundo lugar, a defesa do património edificado exige uma nova política cultural. Se é verdade que Portugal possui uma legislação de proteção do património de boa qualidade, bastante abrangente no seu articulado e orientada por princípios adequados a uma preservação e uso dos edifício, bens e sítios qualificados, também é certo que entre a lei escrita e a prática social há um abismo significativo. Deste modo, por todo o país tem vindo a degradar-se parte significativa do património edificado, sendo em Braga os casos mais recentes o do Recolhimento das Convertidas, a de edifícios senhoriais como a Casa da Naia ou a degradação das ruas antigas com destruição de fachadas e interiores de casas do final do século XIX e princípio do século XX (por exemplo, na Rua de São Vicente) e, também, a urbanização do interior de quarteirões.

A defesa e preservação do património, sendo tarefa de toda a sociedade, exige, todavia, um esforço público significativo. O último orçamento do Estado aprovado (o de 2021) atribuiu à Cultura (descontando as verbas da RTP) uma percentagem global de 0.21%! É desta verba muito reduzida que se deduzem as despesas com o apoio à atividade cultural e criativa, a manutenção dos museus públicos e a regeneração e proteção do património. O mínimo que seria de exigir num país moderno deveria ser o de um euro por cada cem gastos naquelas atividades. A inscrição deste objetivo, de forma progressiva e no horizonte de uma legislatura, deveria fazer parte dos programas partidários.

Mas não é apenas de apoio financeiro que o património edificado carece. O sentido do usufruto desse património é também um ponto fulcral de um mandato político. Neste aspeto, três questões têm vindo a sobrelevar na agenda política recente.

A primeira, diz respeito à tendência para a turistificação do património e para a assunção das cidades e sítios como “marca”. Trata-se de uma efetiva desvalorização das dimensões simbólicas, emocionais e cidadãs do património – isto é de tudo aquilo que no património edificado se estabelece como marca identitária e de reconhecimento comum – pela sua substituição pelo valor mercantil de troca. É isso que leva à alienação de edifícios e bens para usufruto exclusivo de privados, usualmente com elevado poder económico. É o caso, por exemplo, da transformação de castelos, palácios e outros edifícios qualificados em hotéis de luxo, de acesso restrito (em Braga, um exemplo é o do edificio neo-clássico do antigo hospital de São Marcos). Se isso pode garantir a sustentabilidade económica, o preço a pagar é insuportavelmente elevado: trata-se de dar a poucos o usufruto do que deveria ser de todos.

A segunda tem a ver com a sacralização do património, por ser legado do passado. Ora, este é imperfeito, como todo o processo humano o é. Não faz sentido considerar como imutável todo o legado que vem de trás, por esse simples efeito. Não podemos deixar de considerar nefasto o que resiste de contextos como ao da Inquisição, do colonialismo ou do fascismo. Nesse sentido, a reapreciação crítica do património associado a esse passado nefasto deve estar incluída como projeto de uma política patrimonial contemporânea. A história é uma construção social e o património algo continuamente reapreciável, o que coloca como objetivo indispensável o seu estudo crítico. Esta é também uma tarefa a ser exercida pelo Estado.

 A terceira incide na versão redutora do património como coleção de monumentos. Se a ideia do património imaterial evidencia como é importante considerar as formas populares de construção da sociabilidade humana, que nos vem do passado (para quando a candidatura do património comum da humanidade imaterial do artesanato minhoto, do furado de Barcelos aos lenços de namorados de Guimarães, passando pelos cordofones bracarenses? igualmente importante é a preservação das paisagens, das praças e das ruas urbanas, das árvores e das casas que nos identificam e estabelecem um horizonte comum de referência e de pertença. Manter, preservar, estudar e usufruir tudo isto implica obstruir a sua apropriação privatística e impedir que o descaso, a indiferença, a especulação ou a ganância o destrua.

 Um mandato político para o património não pode, finalmente, deixar de considerar o papel essencial que o movimento associativo representa nesta frente tão importante da vida democrática. A ASPA acredita ser testemunho vivo dessa procura de caminhos comuns pela defesa, preservação, estudo e disponibilização ao usufruto de todos do património natural e cultural. Tomara que o novo ciclo político possa constituir uma nova era para a sustentabilidade ambiental e a democratização cultural.

Votos de um Ano de 2022 com boa saúde, ambiente sustentável e cultura