Face ao debate suscitado pelo projecto de reabilitação
do antigo Cinema São Geraldo, venho deste modo discorrer sobre o edifício
conhecido como “Pé Alado”, sito no Largo Carlos Amarante, em Braga, de autoria
do Arquitecto Luís Cunha.
Formado em 1957 na Escola de Belas Artes do Porto
(ESBAP), contemporâneo do Arquitecto Álvaro Siza Vieira, na sua actividade
profissional desde sempre consagrou uma constante atenção às tendências e
debates da teoria e prática da arquitectura, assumindo uma atitude iconoclasta
crítica que lhe confere um carácter singular e irreverente, de arquitecto /
artista, fruto da sua formação na ESBAP, então com uma grande interligação com
as restantes artes plásticas.
Tendo integrado o Movimento de Renovação da Arte
Religiosa (1953), juntamente com nomes como Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas
entre outros arquitectos e artista plásticos, desenvolveu regularmente
trabalhos para a Igreja Católica ao longo de toda a sua carreira.
Em Braga, para além do “Pé Alado”, entre outros
projectos e citando apenas o de maior visibilidade, é autor da sede do jornal
Diário do Minho, sendo também autor, agora já no concelho de Terras de Bouro,
do conjunto formado pela Basílica de São Bento da Porta Aberta e do Hotel de
São Bento.
O “Pé Alado”, edificado nos anos oitenta do século XX,
é um edifício inserido num contexto urbano complexo e monumental, ocupando uma
nesga no antigo quarteirão do demolido Convento dos Remédios, posteriormente
substituído por edifícios menores, designadamente pelo antigo Cinema São
Geraldo e o Centro Comercial de Santa Cruz, sendo este último sido precedido
pela antiga central de camionagem.
Neste contexto, o “Pé Alado” veio a ocupar parte do
edifício do cinema, nomeadamente o sector que correspondia à servidão lateral
do mesmo, a qual fora aberta no alinhamento dos dois últimos vãos do lado sul
da fachada que veio a ruir aquando da construção do Centro Comercial de Santa
Cruz.
A ruína daí resultante foi mantida aparente, através do
imbricado das alvenarias como memória desse desleixado acidente.
Assim sendo, a obra surge como uma cunha, ocupando o
vazio da pré-existência, assumindo uma forma de rotura que resulta numa
engenhosa composição de positivo / negativo, com cores e reflexos que
simultaneamente valorizam a envolvente monumental – Igreja / Hospital de São
Marcos e Igreja de Santa Cruz – bem como o elemento escultural que dá nome à
obra, o “Pé Alado”.
É uma obra que adiciona a importância do símbolo à
arquitectura moderna, no sentido do pensamento pós-moderno. Essa corrente do
pensamento, com raízes na filosofia estruturalista, influenciou então o debate
arquitectónico, nomeadamente através do contributo de nomes como Robert
Venturi, Michael Graves, Charles Moore, os irmãos Robert e Leon Krier, Manfredo
Tafuri, Aldo Rossi, James Stirling, e Ricardo Bofill, entre outros.
Foi o período do regresso da história à arquitectura
contemporânea, com a introdução dessa dialética na linguagem arquitectónica,
através de uma mais orgânica integração nos espaços urbanos e a assunção mais
explícita de elementos formais na composição do objecto arquitectónico.
Afirma-se assim esta obra nesse sector do percurso do
autor, necessariamente moderno, contextualista, pós-moderno e tudo, reiterando
neste trabalho singular a sua essência de arquitecto / artista.
No âmbito da defesa do património arquitectónico,
importa desde já alertar e termos sempre presente que a arquitectura
contemporânea é património do futuro, o qual é premente sinalizar e
valorizar, sob o risco desse legado ser destruído ou descaracterizado.
Não obstante, porque de arquitectura e de arquitectos é
que aqui falamos, não quero deixar de testemunhar que tenho a maior
consideração profissional e amizade pessoal pelos autores do projecto de
reabilitação do Cinema São Geraldo, pelo que tenho como certo que não deixarão
de ser sensíveis a estas breves linhas.
Finalmente, afirme-se que a anunciada intervenção no
São Geraldo será pois a oportunidade (esperamos que não perdida) para a
sociedade no geral e as entidades responsáveis em particular mostrarem o seu
verdadeiro empenho na valorização do património, tendo como certo que a
história nos julgará, pois, por mais bonitos que nos vejamos no espelho dos
nossos projectos, só as nossas obras e o que o tempo faz com elas prevalecerá.
Sic transit glória mundi.
Teotónio Santos
(Arquitecto)
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