INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

ENTRE ASPAS - "PÉ ALADO - refletir sobre um património singular"

Face ao debate suscitado pelo projecto de reabilitação do antigo Cinema São Geraldo, venho deste modo discorrer sobre o edifício conhecido como “Pé Alado”, sito no Largo Carlos Amarante, em Braga, de autoria do Arquitecto Luís Cunha.
Formado em 1957 na Escola de Belas Artes do Porto (ESBAP), contemporâneo do Arquitecto Álvaro Siza Vieira, na sua actividade profissional desde sempre consagrou uma constante atenção às tendências e debates da teoria e prática da arquitectura, assumindo uma atitude iconoclasta crítica que lhe confere um carácter singular e irreverente, de arquitecto / artista, fruto da sua formação na ESBAP, então com uma grande interligação com as restantes artes plásticas.
Tendo integrado o Movimento de Renovação da Arte Religiosa (1953), juntamente com nomes como Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas entre outros arquitectos e artista plásticos, desenvolveu regularmente trabalhos para a Igreja Católica ao longo de toda a sua carreira.
Em Braga, para além do “Pé Alado”, entre outros projectos e citando apenas o de maior visibilidade, é autor da sede do jornal Diário do Minho, sendo também autor, agora já no concelho de Terras de Bouro, do conjunto formado pela Basílica de São Bento da Porta Aberta e do Hotel de São Bento.
O “Pé Alado”, edificado nos anos oitenta do século XX, é um edifício inserido num contexto urbano complexo e monumental, ocupando uma nesga no antigo quarteirão do demolido Convento dos Remédios, posteriormente substituído por edifícios menores, designadamente pelo antigo Cinema São Geraldo e o Centro Comercial de Santa Cruz, sendo este último sido precedido pela antiga central de camionagem.
Neste contexto, o “Pé Alado” veio a ocupar parte do edifício do cinema, nomeadamente o sector que correspondia à servidão lateral do mesmo, a qual fora aberta no alinhamento dos dois últimos vãos do lado sul da fachada que veio a ruir aquando da construção do Centro Comercial de Santa Cruz.
A ruína daí resultante foi mantida aparente, através do imbricado das alvenarias como memória desse desleixado acidente.
Assim sendo, a obra surge como uma cunha, ocupando o vazio da pré-existência, assumindo uma forma de rotura que resulta numa engenhosa composição de positivo / negativo, com cores e reflexos que simultaneamente valorizam a envolvente monumental – Igreja / Hospital de São Marcos e Igreja de Santa Cruz – bem como o elemento escultural que dá nome à obra, o “Pé Alado”.
É uma obra que adiciona a importância do símbolo à arquitectura moderna, no sentido do pensamento pós-moderno. Essa corrente do pensamento, com raízes na filosofia estruturalista, influenciou então o debate arquitectónico, nomeadamente através do contributo de nomes como Robert Venturi, Michael Graves, Charles Moore, os irmãos Robert e Leon Krier, Manfredo Tafuri, Aldo Rossi, James Stirling, e Ricardo Bofill, entre outros.
Foi o período do regresso da história à arquitectura contemporânea, com a introdução dessa dialética na linguagem arquitectónica, através de uma mais orgânica integração nos espaços urbanos e a assunção mais explícita de elementos formais na composição do objecto arquitectónico.
Afirma-se assim esta obra nesse sector do percurso do autor, necessariamente moderno, contextualista, pós-moderno e tudo, reiterando neste trabalho singular a sua essência de arquitecto / artista.
No âmbito da defesa do património arquitectónico, importa desde já alertar e termos sempre presente que a arquitectura contemporânea é património do futuro, o qual é premente sinalizar e valorizar, sob o risco desse legado ser destruído ou descaracterizado.
Não obstante, porque de arquitectura e de arquitectos é que aqui falamos, não quero deixar de testemunhar que tenho a maior consideração profissional e amizade pessoal pelos autores do projecto de reabilitação do Cinema São Geraldo, pelo que tenho como certo que não deixarão de ser sensíveis a estas breves linhas.
Finalmente, afirme-se que a anunciada intervenção no São Geraldo será pois a oportunidade (esperamos que não perdida) para a sociedade no geral e as entidades responsáveis em particular mostrarem o seu verdadeiro empenho na valorização do património, tendo como certo que a história nos julgará, pois, por mais bonitos que nos vejamos no espelho dos nossos projectos, só as nossas obras e o que o tempo faz com elas prevalecerá.
Sic transit glória mundi.
Teotónio Santos

(Arquitecto)

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