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Os últimos dias têm sido mediaticamente dominados, para além da guerra travada na Palestina e em Israel, pelos debates sobre pobreza em Portugal, os rendimentos dos portugueses e a consequência das políticas na coesão social versus a exclusão. A apresentação do Orçamento de Estado para 2024, a publicação do Plano de Ação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2022-2025 e as várias iniciativas associadas ao Dia Internacional pela Erradicação da Pobreza, que se celebrou no passado dia 17, constituem os principais factos desencadeadores desse debate. Dele tem estado ausente a relação do património cultural com as políticas de inclusão social.
Compreende-se este apagamento, em função da visibilidade de questões tão urgentes como a necessidade do aumento dos rendimentos de uma parte muito significativa dos portugueses, a questão crucial do acesso à habitação, como primeiro direito, as medidas que possam minorar os efeitos da inflação, eventualmente em risco crescente de agravamento em função do conflito armado na região que concentra a produção do petróleo. Porém, a defesa e preservação do património cultural não pode deixar de considerar a questão do direito ao seu usufruto pelas pessoas em situação de maior vulnerabilidade económica e social. O património cultural, como bem comum, exprime e, em muitos casos, materializa uma identidade cultural. Daí que o património cultural, material e imaterial, tenha um caráter universal e não possa deixar ninguém de fora.
A promoção da inclusão social pela cultura desdobra-se em dois aspetos nucleares. Em primeiro lugar, no acesso universal à cultura. Em segundo lugar na promoção da cidadania cultural.
O acesso universal à cultura desenvolve-se através de políticas públicas em duas vertentes fundamentais: a educação e a discriminação positiva de públicos desfavorecidos. A educação é consensualmente considerada como o primeiro e principal instrumento de correção de perpetuação das desigualdades sociais. Em especial, a educação desde idade muito jovem, com qualidade pedagógica, favorece a socialização das crianças, promove um sentido de pertença coletiva e é indispensável ao desenvolvimento integral, nos vários domínios, da linguagem ao pensamento crítico, do conhecimento do mundo às capacidades expressivas, da destreza física e psicomotora ao sentido estético. É pela educação que as crianças – todas as crianças – podem interpretar e compreender como André Soares conferiu a Braga a peculiaridade das suas formas barrocas e maneiristas, é pela educação que as crianças reconhecem na defesa do património arbóreo uma das condições essenciais da resistência às alterações climáticas, é pela educação que as crianças desenvolvem o seu sentido de pertença a uma comunidade e adquirem o respeito e a curiosidade pela cultura de outras comunidades. A educação de qualidade para todos é a condição de constituição de um “habitus” coletivo indispensável à existência de uma sociedade verdadeiramente cosmopolita e fraterna.
Mas à educação há que somar a adoção de medidas de discriminação positiva, ao nível nacional e local, para acesso à cultura das pessoas em situação de precaridade social. Medidas como passes gratuitos para acesso a museus e monumentos, organização de visitas guiadas, tertúlias, ações de sensibilização patrimonial, incentivos à fruição cultural através de atividades descentralizadas, são essenciais para que todos possam participar e usufruir dos bens culturais.
Uma outra dimensão, da maior importância e que ultrapassa o nível do (indispensável) acesso a cultura é a promoção da cidadania cultural. Esta pode definir-se como a liberdade de produção de formas culturais e o reconhecimento da genuinidade dessas formas. O sentido da cidadania cultural é hoje visível em muitos locais onde se promove ativamente a produção cultural das populações mais desfavorecidas e se contribui para a sua qualificação, através de iniciativas de ação cultural comunitária. Dos coros musicais às artes performativas, da recuperação de narrativas e contadores tradicionais à cooperação popular em residências artísticas, múltiplos são os domínios da ação cultural enraizada nas comunidades. Guimarães e Paredes de Coura, por exemplo, são municípios próximos de nós onde se desenvolvem ações de muita qualidade de arte comunitária.
A cidadania cultural também se exprime no património cultural. Aliás, muito do nosso património imaterial é genuinamente popular e tem as suas raízes em grupos sociais afastados dos centros do poder ou dos detentores da riqueza. É o caso dos lenços de namorados, bordados por mulheres rurais; é o caso do figurado de Barcelos, construído por gerações de oleiros que erigiram as suas formas toscas a uma expressão plástica capaz de rivalizar com as cerâmicas de Picasso ou de Manuel Cargaleiro; é o caso do património musical em boa hora recolhido por Lopes Graça e Michel Giacometti. Mesmo no património edificado, quem poderá negar o contributo decisivo das pessoas mais humildes, do pedreiro edificador de catedrais ao entalhador que concebeu as formas de tantos retábulos e altares, do artesão dos tapetes e bordados que decoram os palácios aos pintores anónimos dos murais das casas de “brasileiros de torna viagem”?
Favorecer a inclusão social através da cultura, pela educação e a discriminação positiva no acesso aos bens culturais e patrimoniais e criar as condições para a promoção e o reconhecimento da cidadania cultural constituem aspetos normalmente invisibilizados, mas que podem ser determinantes na construção de uma sociedade mais justa e mais coesa.
Imagens:
- Lenço de namorados
- Espetáculo com viola braguesa. Noite Branca 2023