Na semana em que se comemoram os 50 Anos do 25 de Abril, é adequado analisar o contributo da Democracia para a salvaguarda e promoção do Património Cultural e Natural.
Ao contrário de outras dimensões em que a Revolução dos Cravos alterou profundamente a sociedade portuguesa – nomeadamente na instauração da Liberdade e da Democracia, na descolonização e na reentrada de Portugal no concerto das Nações, a começar na Europa, de que estava isolado, e no desenvolvimento da economia, do bem-estar e do Estado Social – não são, porventura, evidentes, os progressos da Democracia no que respeita ao Património Cultural. Mas eles são significativos e de enorme importância, como procuraremos demonstrar. Situam-se especialmente no domínio da democratização da cultura e na atribuição de novos sentidos ao conjunto do património edificado, imaterial e ambiental.
Podemos começar por registar a entrada de vários monumentos e sítios no âmbito da classificação pela UNESCO de Património Comum da Humanidade – nomeadamente, no que respeita a Braga, do Bom Jesus do Monte – o que ocorreu, na sua totalidade, após o 25 de Abril. Na verdade, a Convenção da UNESCO que criou o Património Comum da Humanidade foi aprovada em 1972 e assinada em Portugal apenas em 1980. Atualmente, Portugal é o 18º país do Mundo com mais património inscrito, com um total de 17 monumentos e sítios.
Mas, além disso, a salvaguarda do património passou a ser uma missão coletivamente assumida pela sociedade e pelos cidadãos. O significativo movimento associativo que se constituiu em torno da defesa do património nos anos imediatamente a seguir a 1974 – de que, aliás, a ASPA é um exemplo, criada que foi em 1977, na sequência do movimento cidadão de defesa das ruínas romanas da Colina de Maximinos – só foi possível pela liberdade inaugurada naquele dia de Abril que instituiu o Povo como ator da História, permitiu a criação de associações e abriu as portas da participação coletiva na vida da pólis. O património cultural tornou-se uma causa comum, e tal como o poder caiu na rua, também ele desceu do pedestal da sacralização em que estava, para se constituir como um fator de identidade de todos nós.
Não se pode dizer que o regime anterior ao 25 de Abril não tinha uma política sobre o património. Pelo contrário. Muitos monumentos foram recuperados e classificados. Sobretudo castelos, palácios, mosteiros e igrejas. Foram sobretudo aqueles elementos patrimoniais que serviam para evocar a narrativa ideológica que o regime sustentava. Na verdade, a política patrimonial do Estado Novo inseriu-se numa lógica promocional da doutrina de um Estado Autoritário, Colonial e Nacionalista. Foi essa lógica que levou o regime à recuperação de muitos monumentos degradados, mesmo que com pouco critério técnico, recorrendo com muita frequência ao pastiche – isto é, fazendo de novo, a imitar o antigo (um dos exemplos mais conhecidos, entre muitos outros, é o do Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães) – com a intenção clara de evocar “um passado glorioso”. Ao mesmo tempo, o regime impôs um estilo arquitetónico claramente inspirado na arquitetura italiana do tempo de Mussolini e repartiu pelo país uma estatuária evocativa dos próceres do regime, de que é exemplo, entre nós, a estátua de Gomes da Costa. Não interessou ao regime recuperar edifícios e sítios menos inspirados naqueles ideais e muitos ficaram na ruína. Braga, apesar de celebrada como berço do regime, viu menosprezadas, e, aliás, parcialmente destruídas ainda no tempo de Santos da Cunha, as ruínas romanas da Cividade, abandonado o Mosteiro de Tibães e esquecido o Sistema Hidráulico Setecentista das Sete Fontes. Ruínas romanas, Mosteiro de Tibães e Sete Fontes (neste caso ainda, esperançadamente, em curso) precisamente recuperados em Democracia e a partir da ação cidadã, de que se destacou a ASPA.
O património cultural em Democracia não serve para evocar “gestas do passado”, mas para que todos nos relacionemos com a nossa identidade coletiva. É por isso que o património, numa visão moderna e democrática, não se resume aos grandes monumentos, mas contempla todos os elementos materiais e imateriais que testemunham a vida e a cultura que herdamos, desde as casas de brasileiros aos lenços de namorados, dos azulejos e pinturas murais que decoravam as habitações urbanas ao espólio musical das abadias e dos cantos populares, das fábricas históricas, como a Confiança, aos bairros operários, de que restam tão poucos (como os Galos). Mais, o património são também as árvores e os rios, as florestas e as espécies animais e vegetais autóctones, tantas vezes ameaçadas. Por ser tudo isto, o património em Democracia não contempla uma atitude reverencial e sacralizadora face ao passado e aos seus vestígios. Exige rigor técnico na sua preservação, sentido crítico capaz de analisar o passado e o desconstruir analiticamente nos aspetos que nele exprimem dominação e opróbrio. É por isso que a salvaguarda, estudo e promoção do património edificado e natural, material e imaterial, é uma tarefa sempre inacabada, com ações permanentes de mobilização coletiva, de resposta à ameaça dos interesses predadores e dos poderes políticos e económicos instalados, de divulgação e criação de uma consciência crítica, de educação patrimonial junto das novas gerações, de reivindicação do que é nosso e, por isso, merece o melhor do nosso esforço comum.