INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2023 comemorou 46 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

ENTRE ASPAS: "Incêndios e, também cabalas..."

 INCÊNDIOS, E TAMBÉM CABALAS... (ampliar)

No que diz respeito aos incêndios – agora, mais correctamente designados de rurais - é enorme a diferença em relação a 4 ou 5 anos atrás! Não tanto na realidade mediática, onde o vício se mantém pegajoso, com comentadores e influencers que, por necessidade de se afirmarem nesse espaço, e gozando da activa complacência dos media, debitam sofregamente ciências das quais nada ou muito pouco sabem – nada, afinal, que seja diferente relativamente a tantos outros sectores da vida nacional, e até mundial…

Ainda assim, é possível ouvir vozes que saem de cabeças diferentes desse usual, e que, se forem ouvidas, nos podem fazer pensar. Gostaria de destacar a salutar diferença ao nível da presidência da importante Liga dos Bombeiros, que trouxe laivos de civilização ao discurso, mas também ao comportamento e ao trabalho interno.

Continuamos a ouvir e ver figuras que nos matracam a cabeça atirando as culpas para os eucaliptos, as celuloses, os incendiários, e até, mais recentemente, aos silvicultores que realizaram a arborização das serras, especialmente na primeira metade do Séc. XX – porquê? Porque introduziram aquilo que chamam de monocultura (do pinheiro bravo). Pena que poluam a nossa atmosfera com tanto desconhecimento: esses silvicultores – e não outros – quase sempre que podiam (pelas condições ambientais, designadamente de solo e humidade), instalaram bosques de folhosas que enriqueceram a paisagem e criaram condições de ocupação diversa (quem assim condena, também propala que devemos meter as folhosas autóctones em vez das resinosas, ignorando princípios básicos da Silvicultura quanto às exigências das espécies; e ignorando também que foi graças ao papel pioneiro desse pinhal bravo que foi possível ir reconstituindo a cobertura natural – porém, já então desaparecida – de castanheiros, carvalhos, etc.).

Assim falando, desviam as atenções do cerne da questão: a continuidade dos espaços florestais, tantas vezes dominados por uma ou duas espécies – mas, a agravar a situação, em condições de abandono! Ou seja, aquilo que se designa por falta de gestão!

Claro que para gerir é preciso que haja interesse: rentabilidade que compense. Para que esta exista, é necessário que as unidades a gerir tenham dimensão: aí estamos no domínio do associativismo sob as mais variadas formas (porque também variadas são as condições da propriedade e dos proprietários). Têm os proprietários (até os das heranças indivisas) aproveitado as condições criadas pelo Governo para registarem as propriedades e fazerem uso das variadas figuras criadas para a gestão? Tem o Governo avaliado os resultados das políticas que lançou, para emendar a mão, ali onde elas não funcionaram?

Mas não só dimensão: é preciso que os produtos sejam pagos a preços decentes! Porque continuam os governos a fazer de conta que os preços são regulados pelo mercado, ocultando que o mercado dominado pelos oligopólios não funciona como é apregoado pelos liberais? E os proprietários, porque não se mobilizam para enfrentarem os compradores e suas alianças monopolistas? Porque tem de ser o Governo a fazer tudo o que faz falta, para depois ser acusado de interferência na liberdade individual?!...

E o Governo, quando passa das palavras aos actos com vista a serem pagos aos proprietários florestais os serviços ambientais prestados pelas florestas, para que eles ganhem mais interesse económico e se motivem para a gestão? Ou essa do interesse económico só se aplica aos empreendedores e capitalistas?...

Recusemos a perspectiva de que o problema dos incêndios rurais está no combate: mesmo este, com evidente melhoria em relação ao que se passava nos anos finais da década passada: finalmente o combate é informado por conhecimento científico; a organização do combate passou a ter uma muito mais forte componente de prevenção, com a disposição dos meios em alerta nos pontos mais críticos, etc.

Quando vemos os bombeiros nesse brutal esforço do combate, e o país a pagar os seus custos brutais, não nos esqueçamos daqueles – os proprietários – que, por omissão, deixam que se mantenham no terreno as condições que favorecem a ocorrência dos fogos e sua devastadora expansão.

No que havia para fazer em matéria de meios e de organização da Prevenção e do Combate, já muito se avançou. Como disse há dias o presidente da AGIF, Tiago Oliveira, agora falta discutir “política e os termos em concreto dos objectivos para o território. Nós não vamos ter água no país se não tivermos a floresta bem gerida.”

Sim, Política! É a compatibilização de várias e contraditórias políticas públicas, designadamente as da Agricultura e as das Florestas: as agrícolas, com poderosos lobbies a empurrarem numa direcção contrária àquela que é necessária para valorizar as florestas e o território no seu conjunto. Quem trata disto, senhor Governo? Não basta que este pretenda incentivar os proprietários florestais sem tratar do cerne, ou seja daquilo que a estes interessa para se importarem com a apregoada gestão da floresta – o seu valor! De que incentivos precisará o Governo?!


Este texto foi escrito nos primeiros dias de Agosto. Sobrevieram semanas de pavorosos incêndios.

Estou em crer que esse pavor vem confirmar o essencial: por melhores que sejam – e são! – as técnicas de combate e os meios materiais envolvidos; e por melhor que seja – e é! – a informação de carácter científico e técnico que agora informa as decisões de combate; tudo isso sucumbe diante das condições de seca extrema e da continuidade das áreas com combustível !

Ou o país – instituições e proprietários – se prepara para enfrentar estas gravosas condições naturais, gerindo o espaço e valorizando os produtos (lenhosos, naturalmente, mas também a chamada biomassa e sobretudo os serviços ambientais), ou o país não deixará de gastar fortunas em inglórios esforços de combate aos incêndios: eles serão, por cá, cada vez piores. A menos que haja inteligência colectiva e individual para assumir as responsabilidades que são sempre assacadas aos governos, embora dependam largamente de cada um proprietário, de cada uma comunidade.


Victor Louro

Engº Silvicultor.

(Autor de “A Floresta em Portugal. Um apelo à inquietação cívica”)


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