O Museu Regional de Arqueologia de D. Diogo de Sousa anunciou, recentemente, a doação pela família Braga da Cruz da ara dedicada à divindade indígena de nome Ocaere. Este monumento epigráfico foi descoberto no século XVIII durante obras na igreja matriz de Campos de Gerês, sendo já referido por Contador de Argote em 1732/34. Mais tarde ficou na posse de M. Braga da Cruz que a divulgou, com maior detalhe, em 1972. Admite-se como mais provável que a ara integrasse um santuário romano sito no lugar de O Sagrado, na veiga da aldeia, junto ao traçado da via de Bracara Augusta a Asturica Augusta e entre as milhas XXVII e XVIII. Amílcar Guerra, conhecido epigrafista e investigador de paleo-linguística, afirma que de Ocaere derivou a designação tradicional da via, A Xeira, e o próprio nome da serra, O Xurés.
O contexto é assaz interessante. A VIA NOVA (ou Jeira), depois de ter contornado, pelas vertentes norte, a Serra de Santa Isabel ou de Bouro, desce a Covide, lugar que teve origem num extenso povoado romano, talvez uma mansio. Da veiga de Covide sobe para a de Campos de Gerez. Ora, neste ponto, abre-se uma eloquente panorâmica sobre o majestoso maciço ocidental da Serra de O Xurés, que se ergue até 1235 metros no Alto do Leonte. Por outro lado, é a partir de Campos de Gerês que a via se interna na montanha, prosseguindo pelas encostas oeste da mesma, ao longo do vale do rio Homem (afluente do Cávado) até à Portela homónima. Depois, desce até à mansio Aquis Originis (Lobios, Galicia), mas pelas vertentes noroeste da serra, ao longo do rio Caldo (bacia do Lima).
Em O Sagrado realizaram-se trabalhos arqueológicos, em diferentes campanhas, os quais exumaram os alicerces de uma igreja românica e sepulturas de inumação (em redor), bem como tramos de muros romanos do Alto Império. Os materiais, incluindo capitéis e os muros, indicam que o templo cristão foi edificado sobre um santuário mais antigo. Santuário que, opinamos, poderia albergar, entre outros (talvez ainda escondidos nos muros da igreja matriz), o altar do deus Ocaere. A igreja românica foi demolida na Idade Moderna (século XVII) e a pedra utilizada na construção da actual igreja matriz de Campos de Gerês.
Na verdade, o lugar de O Sagrado é um ponto de eleição que anunciava aos caminhantes o subsequente trajecto da VIA NOVA pela Serra do Gerês/Xurés. A veiga de Campos de Gerês possui uma visibilidade notável.
A partir da veiga de Campos, na Primavera e no Verão, as encostas verdejantes da serra convidavam o caminhante de outrora a desfrutar da sombra do arvoredo, formado por Quercus Robur e Ilex Aquifolium, e todo o sub-bosque desta floresta de folha caduca. Ao tempo, talvez fosse mais extensa, mas ainda hoje se conserva a esplêndida Mata de Albergaria, que a Via Nova atravessa entre as milhas XXIX e XXXIV. No Outono, as folhas caídas sobre o piso da via marcavam um novo ciclo estacional. E no Inverno, os cumes, por vezes revestidos pela neve, recomendavam o agasalho e prudência. Felizmente, entre Campos de Gerez e Lobios existia uma mutatio, na milha XXX, onde os cavalos podiam descansar e os viajantes beber um vinho e comer umas “tapas”. Os mais desprevenidos seriam informados que, daí em diante, iriam atravessar sucessivas pontes, a maior das quais sobre o rio Homem, cruzando assim em segurança o caudal, muitas vezes tumultuoso. Talvez no Verão pudessem refrescar-se com um mergulho nas poças de água transparente do curso de água. No Inverno, mesmo que chovesse impiedosamente e o frio apertasse, sabiam que no final da descida, passada a Portela do Homem (fronteira de duas civitates, a de Bracara e a dos Querquenni), podiam acolher-se na mansio de Aquis Originis, aí tomar um banho quente nas termas (cujas ruínas ainda se conservam), seguindo-se uma boa refeição e, finalmente, repousar durante uma noite, para a jornada seguinte. Entre Covide e Lobios distam 11 milhas, ou seja, cerca de 16 quilómetros, um dia de viagem perfeitamente acessível, sob a protecção de Ocaere. A cavalo seria possível cumprir a distância entre Bracara e Aquis Originis numa única etapa. Porém, o favor dos deuses recomendava uma breve paragem no santuário de O Sagrado, para uma oração.
Deve assinalar-se que raramente cai neve no traçado da Via Nova entre os locais supracitados. A neve e o gelo coroam, por vezes, os picos adjacentes, mas o traçado da via ao longo dos vales do Homem e do Rio Caldo nunca passa 750 metros. A água, pelo contrário, é abundante. Por isso, as pontes e as calçadas para facilitar a travessia de ribeiros de menor caudal, assim como as condutas ao longo da Via. O sistema de drenagem da Via Nova, mantido ao longo de muitos séculos, é uma componente essencial de uma notável obra de engenharia. Obra magna em que se juntaram o notável conhecimento romano e o saber tradicional dos indígenas no trabalho da pedra, do granito (revelado na construção das unidades habitacionais dos castros ou nos banhos dos grandes povoados, como o da Pedra Formosa da Citânia de Briteiros).
Retomando a viagem na mansio de Aquis Originis, é de assinalar que a próxima etapa não era muito distante (14 milhas), ficava em Bande, também junto a uma fonte termal, em Aquis Querquennis (milha LIII a Bracara; a distância gravada nos marcos é sempre referida à sede do conventus). Próximo de Baños de Bande foi levantado um acampamento militar, numa encruzilhada de caminhos tradicionais, já na bacia do rio Lima. Ora, sobranceiro a Aquis Querquennis, levanta-se um pequeno templo, visigótico, ou do séc. VIII, de onde se desfruta uma panorâmica excepcional sobre os contrafortes setentrionais da Serra do Gerês. Nesta capela, dita de Santa Comba de Bande, foi encontrada uma ara. Porém, anepígrafe. Também seria dedicada a Ocaere? Se assim fosse, teríamos uma dualidade semelhante à da Serra do Larouco, onde se conservam dois santuários, situados em pontos opostos da montanha, um, a sudeste, em Portugal, em Vilar de Perdizes; outro na Galiza, a noroeste, em Baltar. Nos dois pontos, ambos em veigas e confrontando com a montanha, encontraram-se aras dedicadas a Larauco. Neste caso a ligação entre o nome latino e o actual não levanta dúvidas.
Convidamos, pois, os leitores a visitar o Museu D. Diogo de Sousa, o Museu da Geira e a percorrer a via entre Campos de Gerez e Lobios.
Francisco Sande Lemos
Nota: a imagem que acompanha este texto pertence à fototeca do Museu D. Diogo de Sousa e é da autoria de Manuel Santos.
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