O património
arqueológico submerso ou subaquático existente em todos os continentes, da
Europa à Oceânia, é extremamente abundante e valioso, registando-se todos os anos
descobertas espectaculares.
Portugal é um dos
países detentor de um vasto património subaquático, pois não só estão referenciados
cerca de cinco mil sítios de naufrágio ao longo da plataforma continental (no
sentido estrito), como também existem nos Açores, onde se encontram assinalados
centenas de locais com interesse. Destaca-se a baía de Angra do Heroísmo,
classificada como Parque Arqueológico Subaquático pelo Governo Regional.
Há, ainda, que
mencionar navios de bandeira portuguesa que naufragaram em locais tão diversos
como a Namíbia, ou o Golfo de Oman, no Mar Vermelho, para além dos que se
afundaram no litoral de países que foram antigas colónias, como Angola,
Moçambique ou Cabo Verde.
Há, também, que
considerar que na costa de Portugal Continental desaguam inúmeros rios, parte
dos quais nascem no interior da Península Ibérica, como o Guadiana, o Tejo,
Douro, ou o Minho. Foram importantes rotas de navegação fluvial e oferecem
imponentes estuários.
Finalmente, é
necessário ter em conta que o litoral português foi durante milénios mais
recortado do que na actualidade. Os estuários dos grandes rios acima referidos
eram mais dilatados e está comprovado que o mesmo se registava noutros cursos
de água como o Ave, o Cávado, o Lima para apenas referir os principais a Norte
do Douro. Recordamos também que os terrenos em redor de Aveiro eram mar até à Idade
Média, ou que tanto Conimbriga
(Condeixa) como Aeminium (a actual
Coimbra) eram acessíveis à navegação marítima.
Ora, apesar deste
vastíssimo património, nem o Estado Novo nem a Democracia nascida em Abril, lhe
têm dedicado suficiente cuidado, salvo quando ocorrem descobertas excepcionais,
em águas de outros países, o que envolve a intervenção da diplomacia portuguesa.
O projecto de formar um Centro Nacional de
Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), de que foi pioneiro Francisco Alves e
que chegou a ter uma actividade expressiva nos anos 90, “naufragou” no século
XXI e encontra-se reduzido à sua expressão mínima, como aliás sucedeu
a tantos serviços do Estado devido à política de austeridade imposta pela UE e
mal aplicada pelo anterior Governo português.
Mas, em boa
verdade, os problemas do CNANS principiaram quando o Governo de José Sócrates
investiu dezenas de milhões de euros na construção do novo Museu de Coches. A
obra do Museu implicou a demolição do edifício onde se encontrava instalado o
CNANS, incluindo os compartimentos necessários para albergar embarcações
retiradas do meio aquático, incluindo os tanques de água com a dimensão
suficiente para o efeito. No delírio que por vezes acomete os dirigentes
políticos, o local escolhido para guardar o material e reinstalar aquele
organismo foi o Mercado Abastecedor de Lisboa, a principal plataforma logística
alimentar da região da grande Lisboa, onde foi alugado um espaço para o efeito.
Porquê o MARL? Porque havia tanques, construídos para outras finalidades.
Passaram-se os
anos, a solução provisória eternizou-se, até que os responsáveis da MARL
entenderam por bem informar o Ministério da Cultura que precisavam do espaço
para o fim original. A situação foi
analisada na Assembleia da República, e foi aprovada por unanimidade em 19 de
Maio último uma recomendação ao Governo para que encontrasse uma solução
definitiva. Teoricamente o CNANS irá para Xabregas, embora seja necessário
fazer obras no imóvel onde vai ficar, pelo que a DGPC pediu ao MARL mais uns
meses de aluguer.
Entretanto, pergunta-se: as pirogas
recolhidas no rio Lima vão continuar a viajar? Do Lima para Lisboa (Belém), de
Lisboa para S. Julião do Tojal - Loures, e daqui para Xabregas?
As duas pirogas são as embarcações mais
antigas até agora recolhidas em Portugal. O lugar exacto da sua descoberta foi
o fundo do leito do rio Lima, no Lugar da Passagem (um sítio de grande
relevância arqueológica sobre o qual muito haveria a dizer, mas tal não é
possível nos limites deste texto). Uma foi avistada por um habitante local e
outra durante prospecções de mergulho orientado para o efeito.
São embarcações
feitas a partir de um único tronco de madeira (carvalho alvarinho, Quercus Robur L) e possuem dimensões
expressivas. A piroga 5, integralmente conservada, tem 5,97 metros de
comprimento e quase um metro de largura máxima (0,99) (ver a foto). Numa delas
foi encontrado uma arte de navegação de influência mediterrânica ou
orientalizante, como se diz em Arqueologia.
As datações por
Carbono 14 das duas pirogas situam-nas no século IV-III antes de Cristo, ou em
plena Idade do Ferro. As datas da sua construção estão em sintonia com o que se
sabe acerca da navegação marítima ao longo do litoral atlântico ocidental, nos
séculos em que fenícios, gregos e mais tarde cartagineses se aventuraram para
além do estreito de Gibraltar, em busca dos preciosos metais em que o Noroeste
Peninsular era rico, designadamente estanho, ouro e prata.
Provavelmente
tinham uma função polivalente: transporte de pessoas na travessia do rio Lima; de
mercadorias rio acima, por onde os barcos de maior calado já não podiam navegar;
pesca (talvez de lampreia, mas não só).
Resta esclarecer
que a cronologia das pirogas está em sintonia com as cerâmicas gregas antigas
recolhidas no Castro de Santo Estevão da Facha, situado um pouco mais a
montante, na margem Sul.
Possam as pirogas
proto-históricas do Rio Lima regressar ao seu lugar de origem, Viana de Castelo,
é o voto que formulamos. Por uma questão de princípio, porque são equipamentos
náuticos raros e porque podem integrar centros interpretativos sobre o rio. Ao
fim e ao cabo, já se passou mais de uma década desde a sua descoberta e já é
tempo de descansarem após as viagens por terras da Lusitania. Na verdade, as pirogas são genuinamente galaicas.
Francisco Sande Lemos, arqueólogo.
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