INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

terça-feira, 6 de junho de 2023

ENTRE ASPAS: "O Direito das Crianças ao Património"

 

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No passado dia 1 celebrou-se o Dia Mundial da Criança. Nesse dia realizaram-se um pouco por toda a parte atividades lúdicas celebratórias e invocaram-se os direitos da criança. A necessidade de haver um dia da criança, celebrado internacionalmente (a que se associa um dia internacional dos direitos da criança, comemorado a 20 de novembro) é a prova da necessidade de se continuar a construir uma consciência coletiva de defesa e proteção da criança, de promoção e provisão de condições de bem-estar para todas elas e de reconhecimento e participação dos mais novos na vida em comum. Na verdade, todos os dias são – e como tal deveriam ser proclamados – dias da criança, do seu bem-estar e dos seus direitos. Infelizmente, as crianças continuam a ser vítimas de maus-tratos, de negligência, de desrespeito pela sua condição etária, de violência física, psicológica e sexual e de subordinação a condições de opressão paternalista. O Dia Mundial da Criança vem-nos recordar o hiato entre o que deveria ser e o que realmente acontece no dia a dia das crianças.

Entre os direitos da criança não consta o direito ao património cultural. A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada em Portugal, pela Assembleia da República, em 20 de setembro de 1990, não contempla efetivamente de modo direto o direito das crianças ao património cultural. Porém, este documento – que constitui o mais universal dos textos legais de direito internacional – prevê no artigo 28 o direito à educação, a qual deve “Inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua.” (artigo 29, alínea c); por seu turno, o artigo 31, no parágrafo 2, preconiza que: “Os Estados Partes respeitam e promovem o direito da criança de participar plenamente na vida cultural e artística e encorajam a organização, em seu benefício, de formas adequadas de tempos livres e de atividades recreativas, artísticas e culturais, em condições de igualdade.”

 A ligação entre os dois artigos permite-nos concluir: 1º, as crianças têm direito à educação; 2º, entre os objetivos da educação está o acesso das crianças à identidade cultural; 3º, acresce o direito da criança em participar ativamente na vida cultural e artística; 4º, sendo o património cultural, material e imaterial, elemento central na definição identitária coletiva e componente da vida cultural e artística, a criança tem o direito de conhecer, ser instruída e usufruir do património coletivo.

A questão da ligação sobre a criança com o património cultural tem sido tematizada no âmbito da educação patrimonial. Esta é uma questão de muito elevada importância, de resto com muita frequência trabalhada pela ASPA e recentemente tratada no Entre Aspas publicado no passado dia 5 de dezembro. Sem desmerecer da importância da escola e das atividades educativas formais no âmbito da educação patrimonial, interessa-nos neste artigo referir as responsabilidades da Cidade na promoção do direito da criança ao património cultural.

 Uma forma usual, mas limitada, redutora e contraproducente dos municípios associarem a infância ao património consiste na realização de atividades efémeras, normalmente de natureza comemorativa, à realização de cortejos ou encenações sem rigor histórico, à promoção de uma ou outra conferência ou visita guiada, sem preocupação de continuidade nem qualidade pedagógica. A promoção do direito ao património cultural não passa pela sacralização de monumentos e sítios, nem significa fazer das crianças, através de campanhas promocionais da imagem da cidade, clientes ou defensores da “marca” Braga. Significa, outrossim, o envolvimento ativo das crianças no património local, como usufruidores dos bens patrimoniais coletivos, curiosos do espaço que ocupam e da sua história, participantes ativos na sua defesa e proteção.

As crianças não são pequenos munícipes; são munícipes como os outros; nem são pequenos cidadãos; são cidadãos como os outros, considerando a sua condição geracional específica. Por isso, as políticas públicas de promoção do direito das crianças ao património cultural devem figurar no catálogo prioritário das políticas municipais.

 Entre o que importa e é possível fazer, contam-se ações como: a visita sistemática, aos principais monumentos da cidade, de todas as crianças do ensino básico (priorizando as crianças das freguesias mais periféricas), organizada por cada escola no âmbito de projetos interdisciplinares, de modo a facilitar aprendizagens especificas, devidamente orientada por pessoa habilitada, calendarizada e com transporte cedido pelo Município para esse fim; a criação de uma app com geolocalização dos monumentos e sítios e sua interpretação, numa linguagem acessível; a realização de atividades lúdicas associadas ao património, de forma cíclica, como por exemplo, caça ao tesouro, concursos, e atividades gráficas; a criação do cartão infantojuvenil gratuito de acesso a todos os museus; a criação e disponibilização da agenda cultural para crianças, em formato digital e gráfico; o envolvimento das crianças em dispositivos de participação (assembleias, grupos focais, inquéritos de opinião) sobre opções em matéria patrimonial; apoio sistemático às escolas para atividades regulares de educação patrimonial, no âmbito curricular de cidadania e desenvolvimento.

As crianças não são meros depositários da esperança do futuro. São seres do presente, com presença viva na cidade. Que esse presente seja construído com um conhecimento vivo e crítico do que o passado nos legou é uma condição necessária para que aquelas esperanças possam ser solidamente ancoradas e concretizadas.

Manuel Sarmento


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