Não é difícil recuar milénios e buscar uma origem às estátuas que nos habituámos a ver e até a contemplar nos largos e praças de nossas cidades e vilas.
E essa imagem pode estar nos menires e outros monumentos megalíticos, nos totens de comunidades índias e africanas, nas esfinges egípcias, na estatuária greco-romana, em semelhantes objetos espalhados pelo Mundo asiático. Com cariz religioso e, consequentemente, político, esses artefactos desafiavam a fragilidade da memória humana, cumprindo uma função de homenagem e consagração dos deuses e de perpetuação dos heróis míticos fundadores. Todos eles marcaram um momento, um contexto que só ficou a existir através desses testemunhos físicos. Extensões da memória humana, erguidos contra o esquecimento e os seus efeitos mais prejudiciais à coesão identitária e à integridade e perenidade no espaço-tempo.
Braga tem hoje, como sempre teve, e estranho seria que assim não fosse, uma forte presença religiosa nos seus espaços públicos. Se a representatividade – própria da condição de um antiquíssimo arcebispado e digna do apodo de Roma portuguesa – não se discute, já os critérios estéticos, tal como as condições de preservação e perpetuação de bens que embora reportem à Igreja são parte da cidade e, por isso, da comunidade que nela vive, diz respeito a todos os cidadãos. Estamos, na verdade, num ponto de cruzamento entre religião e laicidade, seja porque as figuras representadas foram mais que meros cónegos ou bispos, tendo desempenhado papel ativo, na comunidade bracarense e nacional, seja porque a preservação de uma igreja, capela ou mero cruzeiro, diz respeito a todos aqueles que fazem a cidade, crentes e não-crentes.
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Oferecida ao espaço público, a estatuária não pode escapar ao juízo de quem nele circula, o que inclui a sátira popular. Vale aqui o desacerto entre a intenção de quem erige o monumento e uma leitura crítica do mesmo. Bom exemplo é o da estátua de César Augusto, que evoca o egrégio passado romano da cidade sem escapar à sátira devida a uma escolha que terá mais de pós-moderno que de registo histórico real. Um género de perplexidade e interrogação acerca do uso da história que igualmente se coloca quando vemos um guerreiro bracaro posto em lugar de destaque numa rotunda: que mitificações convoca numa cidade cada vez mais aberta e cosmopolita?
Não está em causa, bem entendido, negar a história ou reescrevê-la, bem pelo contrário. O espaço público deve ser expressão de uma comunidade que mesmo mudando de forma, extensão e densidade se perpetua no tempo, sendo a estatuária peça essencial nessa experiência de continuidade. A história e a memória podem, porém, tornar-se em armadinhas perigosas, ora por nos aprisionarem num tempo que já não é o nosso, ora por nos empurrarem para um presente esquecendo a sua transitoriedade. Importa, por isso, encontrar um equilíbrio virtuoso, e este exige a sinalização do contexto e uma abertura a uma cidadania esclarecida, capaz de perceber criticamente o que representam as estátuas com que se cruza – lançada recentemente (2021) pela Zetgallery-DST Group, a obra de Helena Mendes Pereira e Nilo Casares, Braga em Obras: catálogo das obras de arte em espaço público (século XX e XXI) no concelho de Braga, faz um retrato expressivo do objeto a que aqui nos reportamos.
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As estátuas não são eternas. São a expressão de figuras ou acontecimentos a que se dá importância em cada curva da história. Não podemos esquecer, por outro lado, que o passado é um instrumento poderoso de construção de poder. Erigir ou destituir um momento que evoca o passado e lhe dá sentido deve, por isso, ser objeto de escrutínio por parte da comunidade. O debate alargado e a consulta referendária devem ser instrumentos a considerar nestes processos, tal como deve ser considerada, também, a importância de contextualizar a memória, seja através de textos explicativos, seja remetendo estátuas que perderam sentido histórico para parques ou museus.
São várias as estátuas relembradas neste texto: ao Marechal Gomes da Costa, a Santos da Cunha, ao Cónego Melo, a D. João Peculiar e, as mais recentes, a César Augusto e a Salgado Zenha.
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