INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

terça-feira, 9 de maio de 2023

ENTRE ASPAS: ESTATUÁRIA URBANA: um Dilema patrimonial... e um Dilema em Braga"

 O DILEMA PATRIMONIAL


Não é difícil recuar milénios e buscar uma origem às estátuas que nos habituámos a ver e até a contemplar nos largos e praças de nossas cidades e vilas.
E essa imagem pode estar nos menires e outros monumentos megalíticos, nos totens de comunidades índias e africanas, nas esfinges egípcias, na estatuária greco-romana, em semelhantes objetos espalhados pelo Mundo asiático. Com cariz religioso e, consequentemente, político, esses artefactos desafiavam a fragilidade da memória humana, cumprindo uma função de homenagem e consagração dos deuses e de perpetuação dos heróis míticos fundadores. Todos eles marcaram um momento, um contexto que só ficou a existir através desses testemunhos físicos. Extensões da memória humana, erguidos contra o esquecimento e os seus efeitos mais prejudiciais à coesão identitária e à integridade e perenidade no espaço-tempo.



                                O DILEMA EM BRAGA



Braga tem hoje, como sempre teve, e estranho seria que assim não fosse, uma forte presença religiosa nos seus espaços públicos. Se a
representatividade – própria da condição de um antiquíssimo arcebispado e digna do apodo de Roma portuguesa – não se discute, já os critérios estéticos, tal como as condições de preservação e perpetuação de bens que embora reportem à Igreja são parte da cidade e, por isso, da comunidade que nela vive, diz respeito a todos os cidadãos. Estamos, na verdade, num ponto de cruzamento entre religião e laicidade, seja porque as figuras representadas foram mais que meros cónegos ou bispos, tendo desempenhado papel ativo, na comunidade bracarense e nacional, seja porque a preservação de uma igreja, capela ou mero cruzeiro, diz respeito a todos aqueles que fazem a cidade, crentes e não-crentes.

Ao escolher-se o espaço público para dar destaque a uma figura ou um acontecimento, tal como quando se remove algum desses signos, assume-se um ato político que envolve toda a comunidade. Como já se disse, é uma responsabilidade que não se esgota no presente, e é justamente essa condição de dilação no tempo que deve levar à maior ponderação e à máxima explicação, já que as interrogações e dúvidas são sempre uma oportunidade de debate cívico – e que falta ele faz na cidade.
(...)

Oferecida ao espaço público, a estatuária não pode escapar ao juízo de quem nele circula, o que inclui a sátira popular. Vale aqui o desacerto entre a intenção de quem erige o monumento e uma leitura crítica do mesmo. Bom exemplo é o da estátua de César Augusto, que evoca o egrégio passado romano da cidade sem escapar à sátira devida a uma escolha que terá mais de pós-moderno que de registo histórico real. Um género de perplexidade e interrogação acerca do uso da história que igualmente se coloca quando vemos um guerreiro bracaro posto em lugar de destaque numa rotunda: que mitificações convoca numa cidade cada vez mais aberta e cosmopolita?

Não está em causa, bem entendido, negar a história ou reescrevê-la, bem pelo contrário. O espaço público deve ser expressão de uma comunidade que mesmo mudando de forma, extensão e densidade se perpetua no tempo, sendo a estatuária peça essencial nessa experiência de continuidade. A história e a memória podem, porém, tornar-se em armadinhas perigosas, ora por nos aprisionarem num tempo que já não é o nosso, ora por nos empurrarem para um presente esquecendo a sua transitoriedade. Importa, por isso, encontrar um equilíbrio virtuoso, e este exige a sinalização do contexto e uma abertura a uma cidadania esclarecida, capaz de perceber criticamente o que representam as estátuas com que se cruza – lançada recentemente (2021) pela Zetgallery-DST Group, a obra de Helena Mendes Pereira e Nilo Casares, Braga em Obras: catálogo das obras de arte em espaço público (século XX e XXI) no concelho de Braga, faz um retrato expressivo do objeto a que aqui nos reportamos. 
(...)
As estátuas não são eternas. São a expressão de figuras ou acontecimentos a que se dá importância em cada curva da história. Não podemos esquecer, por outro lado, que o passado é um instrumento poderoso de construção de poder. Erigir ou destituir um momento que evoca o passado e lhe dá sentido deve, por isso, ser objeto de escrutínio por parte da comunidade. O debate alargado e a consulta referendária devem ser instrumentos a considerar nestes processos, tal como deve ser considerada, também, a importância de contextualizar a memória, seja através de textos explicativos, seja remetendo estátuas que perderam sentido histórico para parques ou museus.

São várias as estátuas relembradas neste texto: ao Marechal Gomes da Costa, a Santos da Cunha, ao Cónego Melo, a D. João Peculiar e, as mais recentes, a César Augusto e a Salgado Zenha.

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