Há dezasseis anos, aquando das comemorações do bimilenário da cidade de
Braga (2000) evocando D. Diogo de Sousa (1461-1532), por
indisponibilidade daquele que continua a ser o seu principal referente de
conhecimento, o Professor Avelino Jesus da Costa, fomos convocados a refletir
sobre a figura e a obra do arcebispo. De imediato concluímos que D. Diogo
mobilizava a “convergência de mentalidades, de saberes e de desígnios que
ultrapassam os comedimentos evocativos da memória individual e recriam ainda,
com oportuno motivo, o tema de uma lição sempre actual”. A sua figura
representa hoje um dos mitos maiores de vasta galeria de antístites que
governou espiritual e secularmente a cidade. Uma personalidade mundividente,
fértil de relações e de acontecimentos, que garante o referencial de uma época,
mais do que um pretexto que não passa indiferente ao investigador ou escolar,
que se possa omitir em guia turístico ou reportagem jornalística. D. Diogo de
Sousa é o ponto de partida e de chegada do conhecimento e da compreensão do Renascimento
em Braga.
É verdade que Braga, na viragem do século XV para o XVI e no contexto do
noroeste peninsular, tinha perdido o protagonismo demográfico para outras
cidades litorais, que prosperavam das viagens marítimas de longo curso e dos
contactos distantes, conservando contudo a herança romana de se constituir como
um polo religioso e temporal de um vasto território, o mesmo que hoje, excluído
o Douro vestibular, corresponderia ao Norte de Portugal. Para além da atávica expressão
de cerca 5 mil habitantes citadinos, confirmados pela famosa vista de
Braun (1594), a prelatura de D. Diogo (1505-32) vem relançar o seu
principal potencial, isto é, o poder da sua atracção simbólica, emanado da
longa história, no plano espiritual e administrativo; e na prolixidade e difusão
das suas gentes pelo mundo.
D. Diogo traz consigo uma nova atitude, um diferente modo de estar,
que resulta do seu altruísmo de príncipe, da sua erudição e cosmopolitismo, aos
quais não é estranha a condição de cortesão e figura próxima dos reis D. João
II (1481-95) e D. Manuel (1495-1521). Estudou em Évora; Lisboa, então o cais da
Europa; Salamanca; Paris. Relacionou-se com alguns dos mais reputados
humanistas, como Henrique Caiado; Cataldo Sículo e André de Resende. Integra as
embaixadas ao Papa por designação dos mesmos monarcas, onde toma contacto
directo com a matriz e o grande teatro do Renascimento, designadamente,
as grandes obras urbanas de Roma e Florença.
O arcebispo, tomando como palco central a cidade de Braga, marca a
transição da cidade medieval, cintada nos seus limites feudais e no alcance
imediato da sua catedral, para uma urbe aberta, interdependente com o seu
território envolvente e com o mundo. Um dos seus legados mais perenes será,
naturalmente, o mecenato urbanístico, pelo que ainda hoje não é possível
compreender a individualidade do centro histórico de Braga sem conhecer a sua
obra. Como nos diria Lewis Mumford (1960), esta situar-se-á na transição do
localismo feudal com o centralismo expansivo, entre a omnipresença de Deus e da
sua Igreja e o centralismo absoluto da construção do estado moderno. Perante a
subsistência dos traços antecedentes do tecido urbano começa então a
implantar-se a antevisão ordenadora da disciplina e da ordem urbana, de algum
modo, abrindo portas à aplicação dos princípios vitruvianos: firmitas, utilitas,
venustas (firmeza, utilidade e beleza).
A expressão com maior alcance da sua obra inscreve-se,
pois, ao nível da infraestrutura urbana, naquilo que hoje em dia se designaria
de obras públicas. Note-se, a expensas próprias e das rendas da mitra, D. Diogo
encetou uma política de mecenato que não tem qualquer paralelo na história
conhecida de Braga. Veja-se a abertura e a rectificação de vias e praças, os
novos equipamentos colectivos, e reforma dos existentes, passando pelo
abastecimento de água à cidade e o arranjo do espaço público. Entre as mais
estruturantes, que ainda hoje desempenham um papel crucial na cidade,
salientaríamos a abertura da rua Nova, que muito justamente detém o seu nome,
sendo ampla e rectilínea de acordo com o padrão da época. Esta via está
associada também a um novo rasgamento na muralha (arco da porta nova,
1512), com a finalidade de melhorar o sistema de comunicação rodado entre os
pontos principais da cidade e articular os mercados existentes em três pequenas
praças do intramuros. Neste contexto, surgiriam outras intervenções do mesmo
tipo, como a rua de São João, a partir das traseiras da Sé, a actual rua do
Cabido, etc. Também promoverá o alargamento e a rectificação de outros espaços
viários existentes, como a antiga rua nova (hoje tramo norte da Frei
Brandão), a praceta fronteira à catedral, bem como no seu enfiamento, e a rua
de Maximinos (hoje troço da D. Paio Mendes). Todavia, dentro do mesmo
doutrinário renascentista, não seria de menor importância o estabelecimento de
um anel de Campos, exterior à muralha medieval, dando origem àquelas que
hoje são as principais praças de Braga (ex. av. Central/praça da República;
campo da Vinha; Hortas; Largo Carlos Amarante, etc…). Também, e ainda no plano
das infraestruturas, D. Diogo promoveu a reestruturação do sistema de
abastecimento de águas à cidade de Braga. Dotando a cidade com uma nova rede de
fontanários, melhorando e reformando os pontos de captação e distribuição
existentes, levando a linfa mais longe e em melhor qualidade (ex. a fonte de
Sousa; dos Granjinhos; da Cónega; Nª Sª a Branca; etc.).
(continua)
Miguel Bandeira,
associado da ASPA
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