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Os lavadouros, fontanários e tanques de rega estão intrinsecamente ligados ao uso quotidiano da água e ao encontro de várias gerações, sobretudo antes da sua distribuição ao domicílio. Desde finais do séc. XIX / princípios do séc. XX eram utilizados pela população, substituindo os rios, onde as mulheres iam lavar a roupa. Em Portugal como na generalidade dos países do sul da Europa.
O filme “A Aldeia da Roupa Branca” (1939), com a famosa Beatriz Costa, conta-nos o dia-a-dia e a vida das lavadeiras da periferia de Lisboa, fazendo-nos entrar abertamente no domínio da vida popular, dos seus costumes, saberes e formas de estar…
A água surge-nos como elemento marcadamente feminino: lavar, cozinhar e cuidar. Ir à procura das mulheres é ir à procura dos espaços públicos do seu quotidiano como os lavadouros e fontanários. São lugares de trabalho, mas também locais que as libertam do fechado espaço doméstico e familiar, onde interagem com outras mulheres da vizinhança, permitindo-lhes a sociabilidade que a taberna e, mais tarde, os cafés reservavam aos homens. São os seus locais de permanência no espaço exterior, de socialização, que utilizam para trocar opiniões, discutir, pedir conselhos ou escutar e alimentar os falatórios da sua comunidade. Não sendo bem-vindas nos cafés nem as ruas feitas para a sua permanência, as mulheres das classes populares, tendo de sustentar as necessidades das crianças e da sua família, fazem também funcionar a cidade nos locais que lhes são atribuídos.
Limitadas no exercício dos seus direitos cívicos, era no espaço ambivalente do trabalho doméstico e da sociabilidade feminina que se modelava socialmente a vida das pessoas, com verdades e mentiras, inúmeras vezes como se de tribunais populares se tratasse, apesar da ausência do réu…
Sendo uma representação física da desigualdade entre homens e mulheres no espaço público, os lavadouros eram uma presença marcante da vida da comunidade e uma manifestação do funcionamento das suas dinâmicas sociais. São cenários de esforço físico, mas também de reprodução da maternidade, permitindo a guarda de crianças e a sociabilização.
Se, inicialmente, as lavadeiras iam lavar nos rios ou nas bacias de água alimentadas por fontes, em condições pouco confortáveis e higiénicas, com o passar do tempo foram-se estabelecendo regulamentos e construídos lavadouros públicos com melhores condições, alguns com cobertura, proteções contra o vento ou mesmo recintos individualizados no espaço comum. Trata-se de uma consciência coletiva que se foi afirmando e reivindicando, nomeadamente na imprensa local, e à qual os municípios tiveram de responder.
O bacilo da tuberculose tornou-se um motor de preocupações de que nos dá eco a imprensa local a partir dos primórdios do séc. XX. As páginas dos jornais enchem-se de queixas quanto ao abastecimento de água, à falta de esgotos e aos cheiros fétidos que provinham das fossas fixas.
A partir da segunda metade do séc. XX, estes lugares de higiene pública e convivência comunitária começam a diminuir, mas a lavagem da roupa à mão continua a ser uma prática ao longo do século. Os bairros sociais, dos anos 50 e 60, incentivam o papel da mulher tradicional e das suas práticas. Constroem-se lavadouros e secadouros nestes bairros, que continuam a ser os lugares privilegiados de sociabilização das mulheres. Mesmo com a revolução do 25 de abril de 1974, que trouxe uma transformação radical aos direitos das mulheres e da sociedade portuguesa em geral, o abandono dos lavadouros de uso público e dos tanques no espaço doméstico foi lento e progressivo. Situações de crise como a que se viveu em 2008, em que se tornou necessário poupar água e luz, vieram-nos recordar que a todo o momento poderemos voltar a retomar estas práticas e estes equipamentos.
A criação de lavandarias automáticas, sobretudo para estudantes, hotéis, turistas e habitantes, é recente. Os lavadouros públicos e os tanques domésticos foram dando lugar às máquinas de lavar, primeiro unifamiliares, depois coletivas e automáticas. Mas, ainda assim, os novos espaços vão-se tornando igualmente locais de reencontro e, de alguma forma, trazem de novo o trabalho doméstico para o espaço público. Agora como espaços mistos, já sem a divisão do trabalho pelo género, ao contrário dos lavadouros públicos onde a presença masculina podia existir, mas apenas de modo excepcional. Como aquela memória contada num lavadouro do nosso concelho, de um viúvo que ia também lavar a sua roupa, pondo a gravata por cima do ombro para não a molhar…
Os lavadouros públicos, hoje maioritariamente abandonados, são locais do nosso património cultural que remetem a vínculos e à memória popular das mulheres e das crianças que as acompanhavam. São espaços de outro tempo económico, testemunhos de vivências que já não existem, mas que estão presentes nas memórias e nos afetos que constituem a verdadeira alma desses lugares. São documentos de uma história maioritariamente oral, que tendem a desaparecer com o crescimento das cidades, o turismo e as pessoas mais idosas. Por isso importa falar com elas e compreender as suas memórias, dar valor a estes espaços comunitários que tendem a ser esquecidos.
A preservação das memórias dos lavadouros públicos representa um novo modo de qualificar a transformação urbana, apelando à recuperação dos valores que lhes estão ligados. Podem aí realizar-se performances artísticas, pela ligação dos lavadouros às artes e à comunidade, como as fotos o demonstram. A sua recuperação tem de ser bem pensada, e está a sê-lo com acção da empresa de águas AGERE, das juntas de freguesia e de outros organismos públicos. Saliente-se a inventariação e estudo promovido e coordenado pela Fundação Bracara Augusta, em colaboração com a Univ. do Minho. Urge conservar estes espaços que valorizam a presença da água, dando-lhes novos usos, com programas públicos que envolvam jardins-de-infância, escolas ou lares seniores. Há todo um trabalho à volta destes espaços, como modo de registar e arquivar os testemunhos, frágeis, em vias de desaparecimento, mas que são essenciais para compreender a construção e a evolução da cidade, nas suas componentes materiais e imateriais. Mais não bastasse, é uma forma de trazer à luz a presença esquecida das mulheres no espaço público e a sua contribuição na vida urbana.
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