INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2023 comemorou 46 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

ENTRE ASPAS "O VALOR DO PATRIMÓNIO IMATERIAL"


O modelo económico que se consolidou na Europa a partir do séc. XVIII, estendendo-se depois a todo o planeta, assenta em vários pilares. Um dos mais relevantes é o da atribuição de um valor de mercado a todos os bens materiais suscetíveis de ser transacionados, incluindo a terra, ficando apenas salvaguardados aqueles que pelo seu valor simbólico contribuem para afirmar identidades coletivas – certos castelos, palácios, catedrais. Os bens intangíveis, muitas vezes associados a sentimentos e afetos, como os que se expressam em festas e celebrações, laicas e profanas, acabaram igualmente, por adquirir valor de mercado, neste caso mediado pela matriz do património cultural. Temos, assim, uma ideia nova, indissociável da afirmação da burguesia, primeiro comercial, logo industrial: certos bens têm valor patrimonial pelo que representam, de tal forma que toda a comunidade nacional se deve implicar na sua preservação.

É partindo deste quadro que devemos entender uma boa parte dos debates contemporâneos acerca do património. Quando está em causa a preservação de um bem patrimonial material (palácio, palacete, casebre ou paisagem), é frequente o confronto entre os interesses adquiridos por privados e um certo entendimento daquilo que é o interesse comum. Na legitimação do interesse privado pesa não apenas a sacralidade da propriedade mas também uma invenção da modernidade: a transformação dos bens fundiários em mercadorias transacionáveis e geradoras de mais-valias. A ideia de interesse comum sustenta-se, por seu lado, numa outra ideia moderna: a de que a preservação do património cultural é indispensável aos processos de reprodução social das comunidades de que é parte. Ilustrações vivas desta tensão não faltam, também na cidade de Braga – desde a valorização hoteleira do edifício contíguo ao Recolhimento das Convertidas, com construção de novos edifícios em Zona Especial de Proteção do Monumento, ao utilitarismo imobiliário da Fábrica Confiança – mas consideremos, desta vez, de que forma a referida tensão se observa quando falamos de património imaterial.

Pensemos em festas que são hoje parte importante da vida da cidade, seja o S. João, a Braga Romana ou a Semana Santa. Ainda que ninguém seja proprietário das festas, ao contrário do que sucede com algum do património construído, nem por isso a tensão entre interesse privado e público deixa de se manifestar, pois nem mesmo o património intangível escapa ao mercado e à inscrição numa folha de cálculo do interesse financeiro. Queremos com isto dizer que o valor da Semana Santa ou do S. João é indissociável da sua configuração enquanto produto que tem valor de mercado. Quantas pessoas traz à cidade? Quanto dinheiro despendem em alojamento, comida e frivolidades? Quem beneficia com esta crescente e esmagadora turistificação do património que a todos pertence?

Importa, então, destacar dois aspetos. O primeiro chama-nos a atenção para o facto de que a valorização do património cultural, feita quase sempre através de dinheiros públicos, tende a favorecer determinados segmentos da comunidade, sejam eles agentes individuais ou coletivos. O segundo aspeto é ainda mais importante. Alerta-nos para o risco de o discurso patrimonialístico poder conduzir a uma desvalorização real do património enquanto recurso de que as comunidades necessitam para o funcionamento dos processos indispensáveis à sua existência e reprodução. Nos processos de patrimonialização já em curso ou ainda em desejo, como Semana Santa ou no S. João de Braga, é fundamental ponderar a relação entre a sua valorização no mercado turístico e o risco de romper a sua relação com o tecido social que faz a cidade. Risco gerado pelos interesses do mercado, que gere mais facilmente um património cristalizado, semantizado de acordo com quadros de reconhecimento globais (onde se inclui a UNESCO), do que um património vivo e dinâmico, capaz de ligar passado, presente e futuro. Esta tessitura de um tempo contínuo que o património cultural nos oferece é indispensável à vida de qualquer comunidade, sendo fundamental resistir à sua erosão, mesmo quando esta é determinada por processos históricos que parecem tão imparáveis como o da mercadorização dos valores a que vimos assistimos.

Classificação e reconhecimento

Sendo antiga e tendo conhecido várias vidas, o reconhecimento de bens patrimoniais relevantes para as comunidades é indissociável da emergência dos nacionalismos oitocentistas, que tanto deram destaque à memória plasmada em monumentos, quanto ao que o povo expressava nas artes populares ou no folclore. Mais tarde, no final da II Guerra Mundial, a UNESCO assumiu um papel de relevo na preservação do património cultural, começando por dar atenção ao património construindo, para depois atender à paisagem (1972) e mais tarde ao património imaterial (2003). Na Convenção que o consagra, entende-se por património imaterial: “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objetos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”, ao mesmo tempo que se tipificam cinco áreas de intervenção: Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vetor do património cultural imaterial; Artes do espetáculo; Práticas sociais, rituais e eventos festivos; Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo; Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.

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