É partindo deste quadro que devemos entender uma boa parte dos debates contemporâneos acerca do património. Quando está em causa a preservação de um bem patrimonial material (palácio, palacete, casebre ou paisagem), é frequente o confronto entre os interesses adquiridos por privados e um certo entendimento daquilo que é o interesse comum. Na legitimação do interesse privado pesa não apenas a sacralidade da propriedade mas também uma invenção da modernidade: a transformação dos bens fundiários em mercadorias transacionáveis e geradoras de mais-valias. A ideia de interesse comum sustenta-se, por seu lado, numa outra ideia moderna: a de que a preservação do património cultural é indispensável aos processos de reprodução social das comunidades de que é parte. Ilustrações vivas desta tensão não faltam, também na cidade de Braga – desde a valorização hoteleira do edifício contíguo ao Recolhimento das Convertidas, com construção de novos edifícios em Zona Especial de Proteção do Monumento, ao utilitarismo imobiliário da Fábrica Confiança – mas consideremos, desta vez, de que forma a referida tensão se observa quando falamos de património imaterial.
Pensemos em festas que são hoje parte importante da vida da cidade, seja o S. João, a Braga Romana ou a Semana Santa. Ainda que ninguém seja proprietário das festas, ao contrário do que sucede com algum do património construído, nem por isso a tensão entre interesse privado e público deixa de se manifestar, pois nem mesmo o património intangível escapa ao mercado e à inscrição numa folha de cálculo do interesse financeiro. Queremos com isto dizer que o valor da Semana Santa ou do S. João é indissociável da sua configuração enquanto produto que tem valor de mercado. Quantas pessoas traz à cidade? Quanto dinheiro despendem em alojamento, comida e frivolidades? Quem beneficia com esta crescente e esmagadora turistificação do património que a todos pertence?
Importa, então, destacar dois aspetos. O primeiro chama-nos a atenção para o facto de que a valorização do património cultural, feita quase sempre através de dinheiros públicos, tende a favorecer determinados segmentos da comunidade, sejam eles agentes individuais ou coletivos. O segundo aspeto é ainda mais importante. Alerta-nos para o risco de o discurso patrimonialístico poder conduzir a uma desvalorização real do património enquanto recurso de que as comunidades necessitam para o funcionamento dos processos indispensáveis à sua existência e reprodução. Nos processos de patrimonialização já em curso ou ainda em desejo, como Semana Santa ou no S. João de Braga, é fundamental ponderar a relação entre a sua valorização no mercado turístico e o risco de romper a sua relação com o tecido social que faz a cidade. Risco gerado pelos interesses do mercado, que gere mais facilmente um património cristalizado, semantizado de acordo com quadros de reconhecimento globais (onde se inclui a UNESCO), do que um património vivo e dinâmico, capaz de ligar passado, presente e futuro. Esta tessitura de um tempo contínuo que o património cultural nos oferece é indispensável à vida de qualquer comunidade, sendo fundamental resistir à sua erosão, mesmo quando esta é determinada por processos históricos que parecem tão imparáveis como o da mercadorização dos valores a que vimos assistimos.
Classificação e reconhecimento
Sendo antiga e tendo conhecido várias vidas, o reconhecimento de bens patrimoniais relevantes para as comunidades é indissociável da emergência dos nacionalismos oitocentistas, que tanto deram destaque à memória plasmada em monumentos, quanto ao que o povo expressava nas artes populares ou no folclore. Mais tarde, no final da II Guerra Mundial, a UNESCO assumiu um papel de relevo na preservação do património cultural, começando por dar atenção ao património construindo, para depois atender à paisagem (1972) e mais tarde ao património imaterial (2003). Na Convenção que o consagra, entende-se por património imaterial: “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objetos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”, ao mesmo tempo que se tipificam cinco áreas de intervenção: Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vetor do património cultural imaterial; Artes do espetáculo; Práticas sociais, rituais e eventos festivos; Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo; Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.
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