INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

ENTRE ASPAS - "A nossa forma de falar: Língua, património e identidade"

Temos ou não temos o direito de usar a nossa forma de falar, mesmo que ela transporte elementos regionais?
Diário do Minho - 26 dez 2016

Sabe o que é que é um cascavelho? Se tiver menos de 40 anos, provavelmente não.
É uma palavra regional (um regionalismo), do Minho e arredores. E até que ponto temos o direito de usar a forma de falar e as palavras que aprendemos na infância?
Esta segunda questão, assim colocada, parece só ter uma resposta: “sempre que quisermos”.
Mas então, por que é que acontecem casos como o seguinte, por mim presenciado: a mãe, com mais de setenta anos, numa conversa em família alargada (filhos, genros, noras, netos), utiliza uma expressão (“botar fora”) que a filha (professora do ensino básico) considera desadequada e publicamente lhe diz para não usar, mas usar outra que considera mais “correta” (“mãezinha, não diga ‘botar fora’, diga ‘deitar fora’”).
Quem for mais sensível a questões de uso da língua, com certeza que já assistiu a situações do género ou semelhantes. Aconselharem (às crianças na escola, por exemplo) a pôr de lado, e substituir por outras, as palavras aprendidas na infância, se consideradas como regionalismos. Conheço vários exemplos de casos do género: o professor mandar o alunos não usar palavras e construções como botar, cabaço, caldo, caruma, engaço, à beira de, e substituí-las por deitar, abóbora, sopa, agulhas, ancinho, ao pé de.
Mas, então, temos ou não temos o direito de usar a nossa forma de falar, mesmo que ela transporte elementos regionais?
A tentação de responder afirmativamente à questão deve ser moderada. Embora ninguém seja proibido por lei de usar os regionalismos que quiser, há uma noção de norma padrão, a noção de que há formas mais corretas de falar do que outras, que é um poderoso mecanismo de pressão social para preferir certas formas linguísticas em vez de outras. Será um pouco idealista pensar que posso sempre usar a minha forma materna-regionalista de falar em todos os contextos. A norma padrão impõe, muitas vezes, que eu evite a palavra ou expressão que aprendi em casa e use a que a escola me aconselha.
A questão está até onde é que deve ir esta imposição de abandono da nossa forma de falar e escolher “a forma de falar das pessoas cultas”, como por vezes aparece indicado. Este modo de ver as coisas parte do pressuposto que o “falar das pessoas cultas” não é um falar regional ou que teve origens regionais, no caso português na região de Lisboa, que funciona como região padrão para os usos do Português Europeu. A médio e longo prazo, este processo (substituir os termos da minha região pelos de outra) leva a que o vocabulário “regional” (de todo o país, exceto de Lisboa) acabe por passar para a zona proibida dos regionalismos a pôr de lado.
A pressão para a unificação linguística é enorme: com a televisão, a escola e os modernos métodos globais de comunicação, a tendência para todos falarmos das mesmas coisas e da mesma forma é avassaladora. E podem apontar-se-lhe vantagens (unificação e impedimento da fragmentação linguística: a língua fica com mais unidade). Mas serão só vantagens?
A primeira desvantagem de aceitarmos a substituição total das palavras da nossa região por outras equivalentes, provindas de uma outra, é a de reconhecer que a nossa região é perdedora. Há quem não se importe, mas também há quem não o queira. A maior parte dos falantes, no entanto, nem tem consciência disso. Basta ver a tendência de substituição dos termos da nossa região minhota/nortenha pelos do sul. Para além dos já atrás referidos, a palavra guarda-sol (anterior geração) já foi substituído por guarda-chuva e esta palavra já está a ser substituída por chapéu-de-chuva e por (simplesmente) chapéu (significando guarda-chuva). E muitos outros casos: sapatilhas são ténis, picheleiros são canalizadores, bolinhos de bacalhau são pastéis de bacalhau.
Mas nestes casos é “só” (e não é pouco) uma questão de preservação do termo formal, da forma da palavra, já que o conceito é idêntico entre o termo da nossa região e o que o vem substituir. Mas há casos em que não é apenas isto que acontece, em que abandonar a nossa palavra é esquecer toda uma dimensão cultural. E aproveito agora o caso de cascavelho referido no início deste texto. É um regionalismo, uma palavra que as novas gerações não conhecem, mas que ainda muita gente utiliza para se referir às castanhas que não chegam a crescer, ficando apenas como cascas raquíticas entaladas nos ouriços. O termo é testemunha de uma época em que as pessoas sabiam como era o processo de apanha das castanhas, onde tinham que distinguir o que era útil (castanhas) do inútil (cascavelho). Por isso, o termo era muitíssimo usado e também metaforicamente, aplicando-se a crianças ou pessoas frágeis, sem grande consistência. O termo testemunhava toda uma forma de vida rural e a importância da castanha nos hábitos vivenciais. Pois esta palavra não aparece registada em nenhum dicionário de língua portuguesa. Pelos dicionários, não ficará na história da língua. É como se nunca tivesse existido, ela e o seu uso, valor cultural e vivencial que teve em muitas e muitas gerações.
Perdermos as palavras que são nossas, da nossa região, é perder um pouco dos testemunhos da nossa forma de viver. As palavras não são só sons arbitrários ligados a significados. Elas representam conceitos, representam a forma como vivemos e como pensamos as nossas inter-relações com as coisas e com os outros. Por isso, é que se diz que a língua é património. E isso significa que se eu desprezar completamente a língua da minha região, desprezo completamente parte do património em que cresci e vivi.
A pressão para falarmos todos da mesma forma e substituirmos as palavras da nossa região por equivalentes de outra, considerada “das pessoas cultas”, é enorme, sobretudo num país supercentralizado como Portugal. No entanto, a consciência de que a minha forma de usar a língua, ainda que com caraterísticas regionais, também é meu património e que, dentro de certos limites, não tenho que ter receio de a usar, também é uma forma de ecologia linguística (e portanto de cidadania no sentido mais nobre do termo), porque permite contribuir para preservar numa língua as suas dimensões múltiplas e abrangentes.
José Teixeira
Professor de Ciências da Linguagem-Univ Minho
jsteixeira@ilch.uminho.pt
                                                                                                                                                                     
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