INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

ENTRE ASPAS: "ÁGUA. Património natural e monumental, do presente para o futuro"

A página "entre aspas", no Diário do Minho, é um espaço que permite divulgar preocupações, alertas e ações da ASPA, no que ao Património Cultural e Ambiental diz respeito. 

No âmbito da articulação com Escolas percebemos que há muito boas práticas em curso, em especial quando há evidências fortes de uma aposta conjunta, nas diferentes escolas de um agrupamento, tendo em vista sensibilizar crianças e jovens relativamente a problemáticas atuais que exigem conhecimento, responsabilidade e competências de atuação no quotidiano. Quando há evidências de valorização da formação Cidadã, em articulação com aprendizagens previstas no currículo de outras disciplinas, com base em problemáticas concretas, percebe-se que estamos perante práticas a que é importante dar visibilidade. Neste caso a ÁGUA foi o tema que uniu alunos, professores e escolas. Foi uma oportunidade para dar a conhecer o Complexo das Sete Fontes - monumento nacional que reune grande manancial de água - a um número significativo de crianças jovens e respetivas famílias.

A revista "defacto", recentemente apresentada na Livraria Centésima Página, é uma evidência dessa aposta na educação patrimonial e ambiental, da parte do Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio. Resultou do trabalho de professores, numa perspetiva interdisciplinar, com base em aprendizagens previstas em várias disciplinas de cada ano de escolaridade.

Por isso mesmo desafiamos o Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio a partilhar esta Boa Prática educativa, pois os bons exemplos devem ser divulgados.


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Água - desde sempre fator maior de sabedoria popular, filosófica, religiosa, simbólica fonte de profecias e parábolas, sem esquecer a disputa territorial e gestão das comunidades. 

Há milhares de anos, na Índia surgem as primeiras evidências de sistemas de abastecimento de água. Os romanos criaram redes de distribuição a populações, legado patrimonial e monumental, suporte de redes posteriores de água potável. Em Portugal, é do séc. XVI o Aqueduto da Água da Prata (Évora), e do séc. XVIII o Aqueduto das Águas Livres (Lisboa) e o Complexo Monumental das Sete Fontes (Braga). Notícias recentes alertam para desperdício da água (30%), uso consciente e fragilidade dos solos por chuva intensa. Braga comemorou o Dia da Água no Complexo das Sete Fontes.

Sensibilizar a comunidade escolar para a problemática da água é um dever, para garantir o direito ao seu acesso no futuro. A cultura não cai do céu, só a chuva, e até esta escasseia gerando secas infindas. Por isso, o Agrupamento de Escolas de Alberto Sampaio (AESAS), como tema relevante para coesão da comunidade, escolheu a ÁGUA, património natural, histórico, social e cultural. A água jorrou pelo agrupamento em projetos, do pré-escolar ao secundário, culminando na habitual publicação da sua revista.

A revista defactoi provoca. Resulta de trabalho autónomo elaborado para publicação. Não pretende alcançar todas as atividades do ano (algumas nem terão expressão em papel), mas desafia a comunidade a refletir sobre a problemática e a escrever para um artefacto público. Convida também a academia e a sociedade, promovendo a reflexão sobre problemáticas atuais que implicam diversas áreas do saber, razão pela qual merece leitura. É uma revista feita para a comunidade urbana, pois não se fecha em paredes de escola.

Este número explora a história recente do Complexo das Sete Fontes, e divulga visitas feitas a este monumento nacional.

Mas nem tudo cabe na “defacto”. No JI de Esporões as turmas “visitaram o fundo do mar” partindo da exploração dos animais marinhos para no final criarem um “mini oceanário” nos corredores.

No 1.º ciclo, cada ano observou um modo de cada gota ser relevante no tesouro que é a água. O tema gerou visitas de estudo, debates, construções 3D, espetáculos, entre outras ações.

O 2.º ciclo, na EB de Nogueira, focou o ciclo urbano da água, o seu percurso do rio ao mar e a preservação de ecossistemas aquáticos (Pavilhão da Água, Nascente do rio Este, ETA, Braval e ETAR), culminando no musical “A Floresta d`Água”, com a encenação em português da canção “Bring me a little Water, Silvy”. A produção do vídeo H2OFF “Porque a água não é só tua!” expressa, de modo criativo e artístico, o trabalho das turmas de 2º ciclo e dos seus vários professores. Comum é o objetivo da importância da água, a sua proteção e valorização para um futuro sustentável. Os alunos aliam música, interpretação e História, e elevam a sua voz em defesa do tema, no “IV encontro da Comunidade Educativa de Braga". Em simultâneo o "H2OFF" foi promovido pela AGERE, associada ao movimento H2OFF.

No 7.º ano, atividades interdisciplinares moveram alunos, professores e famílias numa abordagem criativa, científica, artística e cívica, expressa em projetos de articulação. “Poesia e Ciência: Água como Inspiração e Objeto de Estudo”, das disciplinas de Português e Físico-Química, decorreu na Biblioteca Escolar, aproximando discurso literário e pensamento científico, as dimensões simbólica e física da água, a partir do poema “Lágrima de Preta”, de António Gedeão. Experiências laboratoriais sustentaram a produção de textos reflexivos e criativos. “Família e Alunos Juntos pela Água”, na Semana da Família, envolveu alunos e encarregados de educação em dinâmicas que combinaram realidade aumentada, jogos, quizzes, criação de cartazes e reflexão conjunta sobre a importância de poupar e valorizar este recurso essencial. Firmam-se competências de pensamento crítico, sensibilidade literária, consciência ecológica sobre a água enquanto elemento natural, cultural e humano.

No secundário, as visitas de estudo ao Complexo Sete Fontes, acompanhadas pelo arqueólogo Ricardo Silva e elementos da AGERE, garantiram o conhecimento próximo de uma realidade do passado que se integra no novo Parque da Cidade, com destaque para a expressão artística em desenho. Projetos de cidadania ativa garantiram a pesquisa e escrita intencional em defesa da água e contra o plástico poluidor – problema a resolver na escola.

A temática foi pretexto de aprendizagens significativas, articulação de saberes e estreitamento de laços na comunidade, valorizando a interdisciplinaridade, a criatividade e a cidadania ativa.

 

 Na Livraria Centésima Página, a revista “defacto” fez a sua apresentação à cidade, também com conversa profícua e participação de intervenientes nas atividades e colaboradores, além de representante da edilidade, tendo em vista a defesa deste monumento nacional - “Sistema de Abastecimento de Água à Cidade de Braga, no séc. XVIII” - conhecido por Sete Fontes, e a transformação da área protegida num Parque Verde, há muito aguardado para usufruto da população. Foi relembrado o processo de intervenção cívica/ cidadã que leva já 30 anos.                                 


Maria de Jesus Fernandes

Coordenadora da equipa da revista defacto


quarta-feira, 25 de junho de 2025

Quando teremos o Parque Eco Monumental nas Sete Fontes? Qual a razão do atraso?

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O último programa "Praça do Município", da RUM (21junho), disponível em podcast, teve como tema surpresa as recentes afirmações de João Rodrigues, vereador do urbanismo, sobre o processo relativo ao Parque das Sete Fontes, proferidas durante a apresentação da revista "defacto", do Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio (AEAS). Revista que inclui o texto "Complexo das Sete Fontes. Um parque verde Eco Monumental que será, para sempre, uma vitória da Cidadania!", da autoria de Teresa Barbosa, dirigente da ASPA, que deu o mote para a tertúlia sobre o tão aguardado Parque Verde nas Sete Fontes. Na tertúlia, moderada pelo diretor do AEAS, também participou Ricardo Silva, presidente da Junta de Freguesia de S.Vitor, e Teresa Barbosa; no público marcaram presença Peticionários que atuaram em defesa deste monumento nacional, desde 2009.

 

Questionado sobre o atraso na construção do Parque Verde, João Rodrigues (candidato da coligação JuntosporBraga (JpB) às autárquicas 2025) referiu que não há prazo, contestou a opção pelo Plano de Urbanização e defendeu que a expropriação dos terrenos seria a solução para a construção do Parque Verde nas Sete Fontes. Perguntamos: 

  • seria essa a solução, sabendo que as expropriações, e os litígios que iriam causar, arrastariam os processos no tempo, e conduziriam a valores/m² incomportáveis para o erário público, como aconteceu com o Estádio?
  • quantas décadas andariam os processos de expropriação em tribunal? quem geria os conflitos e ações em tribunal?  
  • quem pagava as expropriações e outras despesas desse processo que, com certeza, iria durar décadas?

Importa ter presente que a estratégia "Plano de Urbanização" contou com a colaboração de juristas e urbanistas conceituados, pessoas com currículo relevante nesta área (académico e no âmbito do planeamento) e, como tal, reconhecidos a nível nacional e internacional.

 

Com o Plano de Urbanização das Sete Fontes publicado em Diário da República (set 2021), que prevê uma área significativa de cedência ao Parque Verde, em cada Unidade de Execução, e com terrenos já adquiridos pelo município, estavam criadas condições para a construção do Parque Eco Monumental das Sete Fontes... desde que os passos seguintes, nomeadamente a elaboração do projeto paisagístico, avançassem em tempo útil, desde o início deste mandato (outubro de 2021).

Se assim fosse já teríamos, com certeza, o projeto paisagístico aprovado e o Parque em fase de construção. 

Em 2021 já estava tudo preparado... 

 

Neste programa da RUM tudo indica que esteve em causa descobrir o(s) culpado(s) do atraso no cumprimento de um compromisso da coligação JpB, nas autárquicas de 2013.  Até 2021, o anterior vereador garantiu as ações necessárias para que o Plano de Urbanização fosse publicado em Diário da República. Por que motivo não foi atribuída prioridade ao assunto desde 2021, de modo a garantir o Parque Verde Eco Monumental? Que tipo de controlo político sobre o seu vereador e de direção no processo exerceu o Presidente da Câmara, Ricardo Rio? A resposta a estas perguntas permite identificar as razões da inércia verificada. 

 

Ricardo Silva, que participou no grupo de Peticionários e também é candidato às autárquicas 2025, lamentou o atraso e referiu a importância das visitas guiadas ao monumento, que tem orientado há anos, tal como instituições e associações cívicas têm feito, para que as pessoas conheçam o património lá existente.

 

A campanha para as autárquicas 2025, tal como outras campanhas do passado, também vai ficar marcada pelo Complexo das Sete Fontes? Até quando?



Sobre este assunto relembramos alertas da ASPA em 2021, 2022, 2023 2024 e em 2025:

 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

ADAPT.LOCAL.25

Realizou-se ontem, em Braga, o 𝟗𝐒𝐞𝐦𝐢𝐧𝐚́𝐫𝐢𝐨 𝐝𝐞 𝐀𝐝𝐚𝐩𝐭𝐚𝐜̧𝐚̃𝐨 𝐋𝐨𝐜𝐚𝐥 à𝐬 𝐀𝐥𝐭𝐞𝐫𝐚𝐜̧𝐨̃𝐞𝐬 𝐂𝐥𝐢𝐦á́𝐭𝐢𝐜𝐚𝐬 - ADAPT.LOCAL.25 -, iniciativa da Rede de Municípios para a Adaptação Local às Alterações Climáticas. O vereador do Ambiente da Câmara de Braga elencou um conjunto de iniciativas realizadas neste âmbito.

Destacamos o contributo do presidente da “adapt.local” – presidente da Câmara de Loulé -, que referiu a importância de os municípios alterarem a orgânica interna, de modo a centrar as opções municipais na ação climática e na economia circular e considerou indispensável o envolvimento, neste objetivo comum, dos técnicos municipais, escolas e comunidade. Em Loulé, lançou desafios às escolas em matéria climática/justiça climática, para que todos assumam estas temáticas como causas suas e, tidos, contribuam para a melhoria que é urgente concretizar. 

Lamentou que a imprensa nacional não dê visibilidade a estas problemáticas, que assumiu como causas da humanidade.   


No que diz respeito ao painel "Adaptação Climática Local: 10 anos depois do ClimAdapt e o futuro", foram apresentados contributos relevantes para a causa climática/ justiça climática, nomeadamente:

  • Esta rede veio despertar consciências por parte de técnicos de municípios, bem como agregou conhecimento científico e técnico
  • É essencial a possibilidade de acesso a fundos comunitários que permitam, claramente, melhorar condições de adaptação às alterações climáticas
  • É essencial que os municípios se articulem com a comunidade académica, no sentido de implementarem práticas, em vários contextos, que permitam uma melhor adaptação às alterações climáticas
  • Os municípios devem criar condições para que a população possa usufruir dos recursos ambientais locais
  • Os Planos Diretores Municipais (PDM) não foram adaptados à mudança dos tempos, nomeadamente às exigências das alterações climáticas
  • No geral, os municípios lidam bem com os riscos do passado, mas têm uma má performance relativamente aos riscos do futuro
  • É frequente ver um péssimo urbanismo, com falta de corredores verdes, espaço urbano impreparado para as pessoas; falta de sensibilidade ambiental; atribuição de licenças de construção que, hoje, não têm qualquer sentido; ausência de decisões, ao nível do ordenamento, no que diz respeito a recursos hídricos, agricultura e floresta e resiliência do solo, numa perspetiva, efetiva, de adaptação às alterações climáticas; etc.
  • É urgente melhorar a capacitação de técnicos municipais e de organismos do estado que lidam com problemáticas ambientais; é preciso ligar peças do puzzle “ambiente”, dispersas por vários pelouros
  • As opções para o território devem respeitar o Ambiente, o que pressupõe respeitar a respetiva EMAAC (Estratégia Municipal de Adaptação às Alterações Climáticas)
  • É essencial que os municípios criem momentos ao longo do ano em que participem representantes de todas as Divisões, em que a adaptação às alterações climáticas e justiça climática sejam o cerne da reflexão
  • É urgente avaliar o que foi realizado em cada município, no âmbito da adaptação às alterações climáticas, de que modo teve impacto positivo nas várias vertentes da ação municipal e se contribuiu para a melhoria da qualidade de vida da população para perceber se é necessário mudar de trajetória.
  • Apesar de estarmos numa situação de emergência climática, verifica-se falta de capacidade e competências para atuar ao nível das políticas públicas
  • Muitas câmaras que têm como referencial uma EMAAC, não a aplicam nos documentos estratégicos como o PDM
  • Os problemas das Cidades/Concelhos não se resolvem com os PDM
  • Os diferentes intervenientes nos processos – a nível municipal e com instituição de âmbito nacional - precisam trabalhar em conjunto, respeitando o Ambiente e atuando de modo a garantir a necessária Adaptação às Alterações Climáticas
  • É urgente melhorar os sistemas de monitorização de práticas que se cruzam com problemáticas ambientais.

Este foi um Seminário que permitiu a reflexão sobre outras temáticas que exigem tomadas de decisão que garantam a adaptação às alterações climáticas, nomeadamente: “Do restauro ecológico à resiliência climática dos sistemas hidrológicos” e “Justiça Climática”. Também duas visitas técnicas.

terça-feira, 17 de junho de 2025

ENTRE ASPAS: "Arquitetura para a vizinhança"


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É justo dizer que a programação da Braga 25 tem olhando a cidade de forma ampla, procurando incluir bairros e periferias urbanas, e mesmo quando essa inclusão é mais retórica que efetiva não deixa de ser um avanço face às políticas culturais a que o município nos habituou.






O Festival de Arquitetura e Arte – Forma de Vizinhança insere-se nesse espírito de abrangência, propondo diferentes intervenções arquitetónicas que visam valorizar o espaço público em urbanizações que nos últimos cinquenta anos cresceram e modificaram a cidade. Tem curadoria e direção artística da Space Transcribers, sendo um dos promotores a empresa municipal FazCultura.

Coerente no conceito e generoso na extensão, o Festival conta com oito intervenções, que vão das Parretas à zona da Makro, das Fontainhas à Quinta da Capela, passando ainda pelo Fujacal, pelas Hortas Urbanas de S. Vicente, da Quinta da Armada e da Quinta da Lameira. Projetadas para decorrer entre junho e novembro do corrente ano, as intervenções foram pensadas num modelo dinâmico, com possibilidade de mudar de forma durante o processo, pelo que é prematuro ajuizar desde já o seu impacto. Tal como marcamos presença na cerimónia de abertura deste Festival, a ASPA não deixará de acompanhar o seu desenvolvimento.

Vale a pena sublinhar que um Festival com estas características se ajusta à ideia de uma cidade dinâmica, em movimento e transformação, contrariando aquela espécie de “provincianismo braguista” que demasiadas vezes enclausura a cidade no seu Centro Histórico, deleitando-se na contemplação nostálgica de uma imaginação de cidade que pouco tem a ver com a cidade real em que nos cabe viver. Ainda assim, dando como boa a ideia e o ponto de partida do projeto, há aspetos que merecem discussão e crítica.

Um primeiro aspeto tem a ver com o uso e abuso da retórica de participação. Sucedeu na cerimónia de apresentação do Festival, tanto pela voz dos curadores como no discurso de Olga Pereira, vereadora e representante do município. Proclamações contentes acerca do envolvimento e participação cidadã no projeto ou da auspiciosa devolução do espaço público às comunidades, soam bem a alguns e enganarão outros tantos, mas são manifestamente exageradas. Uma intervenção arquitetónica numa praça não devolve espaço à comunidade, apenas transforma o que já existia e era usado - nos melhores casos valorizando-o, nos piores casos enchendo-o de tralha e erguendo barreiras que não faziam ali falta nenhuma. Quanto à participação cidadã, reconheça-se a dificuldade: se em bairros onde existem associações ativas, sejam elas de moradores ou outras, a interlocução é possível, em bairros com elevada rotação de moradores e com baixos índices de participação em assuntos comuns, as dificuldades aumentam. Posso, neste ponto, servir como testemunha: enquanto habitante de um bairro contemplado por uma das obras arquitetónicas, em nenhum momento fui informado do projeto que ali estava em curso nem jamais fui convocado para discutir fosse o que fosse. Percebida a dificuldade, assinale-se o abuso retórico, mais grave por provir de um governo municipal que pouco fez nesta matéria, por exemplo dispensando-se de promover a criação de associações de moradores ou optando por um modelo de orçamento participativo que reduz o debate ao espaço virtual evitando os encontros e confrontos reais que fomentam a cidadania.

Ainda que decorra do primeiro, o segundo aspeto que gostaria de sublinhar é de natureza mais genérica, remetendo para a caracterização dos públicos da cultura que um evento como o Braga 25 pretende alcançar. Também aqui importa distinguir a retórica do que de facto acontece. Se o discurso produzido para o Festival de Arquitetura e Arte sublinha a abrangência, não é preciso um olhar especialmente atento para se perceber uma significativa homogeneidade no público que se dispôs a acompanhar a visita aos espaços intervencionados. Maioritariamente jovem e de look alternativo, poderia ser caracterizado por um alinhamento desalinhado, esdrúxulo conceito que pretende sinalizar um desalinhamento face à cidade tomada pelo capitalismo financeiro e um alinhamento com processos de gentrificação urbana, imaginando que dela há-de sair uma cidade mais verde, mais sustentável, mais humana. Claro que não há nenhum problema com este alinhamento, mas ele é revelador de como uma certa forma de promover cultura segmenta mais do que une. Importa que a Braga 25 seja uma oportunidade de criar um ecossistema cultural mais rico e diversificado, contrariando uma certa monocultura, na qual a proclamada abrangência e participação raramente sai do papel ou do discurso.

Reconheço a dificuldade em chegar a certos públicos, mas é justamente em razão dessa dificuldade que se deveria fazer caminho aproveitando o impulso da Braga 25. Claro está que a dificuldade em fazer chegar a alguns públicos mensagens mais complexas ou estruturadas não se esgota na cultura, sendo real também no ecossistema político. Se é verdade que este Festival dá um passo no sentido certo ao pensar uma cidade descentrada, é certo também que não se desviou um milímetro do urbano que constitui a malha consolidada da cidade, deixando intocadas as áreas problemáticas, aquelas onde a cidade se move por ação de agentes que não encaixam nem no perfil hipster de quem tem protagonismo no Festival, nem no perfil distanciado e neutro da média burguesia que habita os bairros intervencionados.

                                        Luis Cunha, Instituto de Ciências Sociais, U.M.

terça-feira, 3 de junho de 2025

PROJETO ESCOLA PATRIMÓNIO


O
Projeto ESCOLA PATRIMÓNIO, promovido pela Fundação Bracara Augusta, desenvolvido e coordenador pela ASPA, no âmbito de um protocolo que também envolve a Confraria do Bom Jesus do Monte levou, ao Santuário do Bom Jesus do Monte, quatro turmas da EB1 de S.Mamede e duas turmas da EB1 de S. João do Souto.
A articulação com as escolas foi da responsabilidade do pelouro da Educação da Câmara Municipal de Braga.
Cerca de 140 crianças recordaram e aplicaram aprendizagens realizadas na escola, no âmbito das diferentes disciplinas do currículo, mas também fizeram descobertas diversificadas com recursos a materiais específicos das diferentes áreas disciplinares. Observaram exemplares da fauna e da flora existentes no Bom Jesus, perceberam que há ameaças à paisagem protegida, realizaram atividades matemáticas nos coretos, escadório e num pequeno bosque junto ao lago.
Conviveram, riram, brincaram e divertiram-se.

Vivências agradáveis que proporcionaram novas aprendizagens, num contexto muito especial: a Paisagem Cultural do Santuário do Bom Jesus do Monte, classificada pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade.
Mais informação no facebook sobre:

segunda-feira, 2 de junho de 2025

ENTRE ASPAS "Recolhimento de Santa Maria Madalena e São Gonçalo (ou das Convertidas)"

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Mandado construir por iniciativa do Arcebispo de Braga, D. Rodrigo de Moura Teles, com o objetivo de albergar “mulheres pecadoras convertidas a Deus”, o Recolhimento de Santa Maria Madalena, vulgo Recolhimento das Convertidas, foi inaugurado no dia 25 de abril de 1722. Uma ironia com mais de trezentos anos, diria, que hoje mais parece um esgar. Uma ruína. E, todavia, a ironia ganha corpo se pensarmos num 25 de abril mais próximo, com cheiro a cravos e revolução, liberdade, igualdade e a conquista do direito ao voto pelas mulheres. Uma luta de séculos que importa não esquecer.

As paredes do Recolhimento falam de ausência de liberdade, de anátema social, de violência sobre o corpo das mulheres ou da sua rasura. De mulheres que, importa sublinhá-lo, não escolheram professar ordens ou a vida conventual, antes foram “recolhidas” e “convertidas” à força, de forma a manter o espaço público “limpo” do mal que elas representavam. Esta a nota de diferença de instituições como os Recolhimentos. Ao que tudo indica, o Recolhimento das Convertidas parece fazer parte dos chamados Asilos de Madalena (ou, na versão irlandesa, Lavandarias de Madalena), instituições criadas no século XVIII um pouco por toda a Europa e América do Norte, e que subsistiram até ao final do século XX. As Lavandarias de Madalena ganharam recentemente visibilidade com a publicação do livro Pequenas Coisas como Estas (2022), da irlandesa Claire Keegan, que dá a conhecer o drama de uma das vítimas destas instituições que se mantiveram ativas até ao final da década de oitenta do século XX. O livro viria a ser adaptado ao cinema por Enda Walsh e direção de Tim Mielants, em 2024.

 

Quando cheguei à cidade, em 1985, justamente no ano em que decorre a ação do filme, lembro-me de ver uma ou outra mulher à porta. Residentes ou visitantes, sobre elas nada sei. O que hoje lamento. Braga transbordava de edifícios conventuais e de espaços de clausura pelo que este era, para mim, apenas mais um. De resto, um edifício austero, discreto, sem outra nota digna de registo para além da pedra de armas do arcebispo, do emblema das convertidas e das janelas gradeadas do torreão.

 

Deu o sol muitas voltas à terra, e eu sem dar pelo edifício. Até que um dia o encontro com a obra de Maria Ondina Braga, nascida a dois passos do Recolhimento, me fez dar de caras com as paredes brancas de alvenaria e escutar as vozes para lá da alvura. O destino de solidão e de exílio destas mulheres assombraria para sempre a escritora que procurou dar corpo, voz, um nome, a este e a outros silêncios na sua escrita, às “histórias, sempre histórias do infortúnio das mulheres”, dos seus dramas ocultos, atravessados pela temática da miséria e da violência, do aborto clandestino e da desigualdade social. A história da “Mil-Homens” é apenas uma delas.

 

Recolhimento, oração e trabalho marcavam o compasso dos dias. A troco de um prato de comida, de um catre onde dormir e de reabilitação social, as mulheres viam-se confinadas ao mutismo e à clausura, impedidas de qualquer contacto com o exterior, como demonstra a grade de ferro que separa os fiéis na Capela de São Gonçalo (aberta ao culto geral) das “convertidas” que assistiam à missa: tão apertada a malha ou treliça de ferro que nem um dedo conseguiria passar e tocar o outro lado. Quando, pela primeira vez, transpus a porta do Recolhimento, estremeci, como se levasse um murro no estômago. Quem ainda hoje visitar o Recolhimento das Convertidas ficará impressionado, entre outras coisas, com a dupla porta do edifício e as sete chaves da porta interior, descobrindo que, mais do que uma expressão idiomática, “estar fechado a sete chaves” é antes o testemunho de um exílio forçado. Ou com o “Tronco”, cubículo em pedra, frio, húmido e sem luz, onde eram encerradas as mulheres que mereciam “castigo”. Ou com os instrumentos de penitência e de "conversão" - “haec sunt arma melitiae nostrae”- pintados no painel central do teto da Capela.

Entrar no espaço reservado da capela é descobrir que as grades são a rasura do olhar e a impossibilidade do tato e da comunicação, de uma qualquer grafia migrante. Elas são a trama do silêncio, as linhas de uma invisível escrita da solidão. Percorrer os espaços íntimos, corredores, celas e jardins é viajar numa máquina do tempo, recuar a esse elegante século XVIII e vislumbrar pelo buraco da fechadura o avesso da sumptuosidade aristocrática, da religiosidade barroca, despojadas de doces cupidos e anjos celestiais, quando não do próprio Cristo saudoso de um calor mais humano. Apesar das ruínas de hoje, tudo permanece intacto, suspenso, como se o tempo tivesse poupado este oásis de silêncio no deserto da cidade, ele próprio cúmplice destas mulheres condenadas à burka invisível do anátema social.

 

É este espaço que urge agora salvar e preservar como espaço de memória para as gerações futuras. A proposta de criação da Casa da Memória da Mulher no Recolhimento das Convertidas merece todo o apoio, desde logo por se tratar de um espaço único (tanto quanto julgo saber) no país, tendo em conta que não foi adulterado ao longo do tempo. Pela carga simbólica, histórica e cultural de que se reveste, a futura Casa da Memória da Mulher legitimamente merece figurar ao lado de espaços congéneres europeus, como é o caso do Køn – Gender Museum (The Women’s Museum), em Aarhus, Dinamarca, um dos raros museus do mundo sobre a temática de género e igualdade, fundado em 1982, e um dos pontos de atratividade turística da cidade.

 

Depois de anos de abandono, que esta proposta conjunta de várias entidades e personalidades ligadas à cultura, ao património, à intervenção cidadã e à comunidade académica tenha finalmente avançado e sido apresentada às entidades com capacidade de intervir na matéria é um sinal de esperança. A sua concretização seria não apenas uma forma de prestar homenagem às mulheres de todos os tempos, mas também uma das melhores notícias no ano em que Braga se orgulha de ser Capital Nacional de Cultura e o Recolhimento das Convertidas completa mais de trezentos anos de história e de memória.                       

Isabel Cristina Mateus

Universidade do Minho/CEHUM