INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

terça-feira, 17 de junho de 2025

ENTRE ASPAS: "Arquitetura para a vizinhança"


Ampliar

É justo dizer que a programação da Braga 25 tem olhando a cidade de forma ampla, procurando incluir bairros e periferias urbanas, e mesmo quando essa inclusão é mais retórica que efetiva não deixa de ser um avanço face às políticas culturais a que o município nos habituou.






O Festival de Arquitetura e Arte – Forma de Vizinhança insere-se nesse espírito de abrangência, propondo diferentes intervenções arquitetónicas que visam valorizar o espaço público em urbanizações que nos últimos cinquenta anos cresceram e modificaram a cidade. Tem curadoria e direção artística da Space Transcribers, sendo um dos promotores a empresa municipal FazCultura.

Coerente no conceito e generoso na extensão, o Festival conta com oito intervenções, que vão das Parretas à zona da Makro, das Fontainhas à Quinta da Capela, passando ainda pelo Fujacal, pelas Hortas Urbanas de S. Vicente, da Quinta da Armada e da Quinta da Lameira. Projetadas para decorrer entre junho e novembro do corrente ano, as intervenções foram pensadas num modelo dinâmico, com possibilidade de mudar de forma durante o processo, pelo que é prematuro ajuizar desde já o seu impacto. Tal como marcamos presença na cerimónia de abertura deste Festival, a ASPA não deixará de acompanhar o seu desenvolvimento.

Vale a pena sublinhar que um Festival com estas características se ajusta à ideia de uma cidade dinâmica, em movimento e transformação, contrariando aquela espécie de “provincianismo braguista” que demasiadas vezes enclausura a cidade no seu Centro Histórico, deleitando-se na contemplação nostálgica de uma imaginação de cidade que pouco tem a ver com a cidade real em que nos cabe viver. Ainda assim, dando como boa a ideia e o ponto de partida do projeto, há aspetos que merecem discussão e crítica.

Um primeiro aspeto tem a ver com o uso e abuso da retórica de participação. Sucedeu na cerimónia de apresentação do Festival, tanto pela voz dos curadores como no discurso de Olga Pereira, vereadora e representante do município. Proclamações contentes acerca do envolvimento e participação cidadã no projeto ou da auspiciosa devolução do espaço público às comunidades, soam bem a alguns e enganarão outros tantos, mas são manifestamente exageradas. Uma intervenção arquitetónica numa praça não devolve espaço à comunidade, apenas transforma o que já existia e era usado - nos melhores casos valorizando-o, nos piores casos enchendo-o de tralha e erguendo barreiras que não faziam ali falta nenhuma. Quanto à participação cidadã, reconheça-se a dificuldade: se em bairros onde existem associações ativas, sejam elas de moradores ou outras, a interlocução é possível, em bairros com elevada rotação de moradores e com baixos índices de participação em assuntos comuns, as dificuldades aumentam. Posso, neste ponto, servir como testemunha: enquanto habitante de um bairro contemplado por uma das obras arquitetónicas, em nenhum momento fui informado do projeto que ali estava em curso nem jamais fui convocado para discutir fosse o que fosse. Percebida a dificuldade, assinale-se o abuso retórico, mais grave por provir de um governo municipal que pouco fez nesta matéria, por exemplo dispensando-se de promover a criação de associações de moradores ou optando por um modelo de orçamento participativo que reduz o debate ao espaço virtual evitando os encontros e confrontos reais que fomentam a cidadania.

Ainda que decorra do primeiro, o segundo aspeto que gostaria de sublinhar é de natureza mais genérica, remetendo para a caracterização dos públicos da cultura que um evento como o Braga 25 pretende alcançar. Também aqui importa distinguir a retórica do que de facto acontece. Se o discurso produzido para o Festival de Arquitetura e Arte sublinha a abrangência, não é preciso um olhar especialmente atento para se perceber uma significativa homogeneidade no público que se dispôs a acompanhar a visita aos espaços intervencionados. Maioritariamente jovem e de look alternativo, poderia ser caracterizado por um alinhamento desalinhado, esdrúxulo conceito que pretende sinalizar um desalinhamento face à cidade tomada pelo capitalismo financeiro e um alinhamento com processos de gentrificação urbana, imaginando que dela há-de sair uma cidade mais verde, mais sustentável, mais humana. Claro que não há nenhum problema com este alinhamento, mas ele é revelador de como uma certa forma de promover cultura segmenta mais do que une. Importa que a Braga 25 seja uma oportunidade de criar um ecossistema cultural mais rico e diversificado, contrariando uma certa monocultura, na qual a proclamada abrangência e participação raramente sai do papel ou do discurso.

Reconheço a dificuldade em chegar a certos públicos, mas é justamente em razão dessa dificuldade que se deveria fazer caminho aproveitando o impulso da Braga 25. Claro está que a dificuldade em fazer chegar a alguns públicos mensagens mais complexas ou estruturadas não se esgota na cultura, sendo real também no ecossistema político. Se é verdade que este Festival dá um passo no sentido certo ao pensar uma cidade descentrada, é certo também que não se desviou um milímetro do urbano que constitui a malha consolidada da cidade, deixando intocadas as áreas problemáticas, aquelas onde a cidade se move por ação de agentes que não encaixam nem no perfil hipster de quem tem protagonismo no Festival, nem no perfil distanciado e neutro da média burguesia que habita os bairros intervencionados.

                                        Luis Cunha, Instituto de Ciências Sociais, U.M.

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