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Mandado construir por iniciativa do Arcebispo de Braga, D. Rodrigo de Moura Teles, com o objetivo de albergar “mulheres pecadoras convertidas a Deus”, o Recolhimento de Santa Maria Madalena, vulgo Recolhimento das Convertidas, foi inaugurado no dia 25 de abril de 1722. Uma ironia com mais de trezentos anos, diria, que hoje mais parece um esgar. Uma ruína. E, todavia, a ironia ganha corpo se pensarmos num 25 de abril mais próximo, com cheiro a cravos e revolução, liberdade, igualdade e a conquista do direito ao voto pelas mulheres. Uma luta de séculos que importa não esquecer.
As paredes do Recolhimento falam de ausência de liberdade, de anátema social, de violência sobre o corpo das mulheres ou da sua rasura. De mulheres que, importa sublinhá-lo, não escolheram professar ordens ou a vida conventual, antes foram “recolhidas” e “convertidas” à força, de forma a manter o espaço público “limpo” do mal que elas representavam. Esta a nota de diferença de instituições como os Recolhimentos. Ao que tudo indica, o Recolhimento das Convertidas parece fazer parte dos chamados Asilos de Madalena (ou, na versão irlandesa, Lavandarias de Madalena), instituições criadas no século XVIII um pouco por toda a Europa e América do Norte, e que subsistiram até ao final do século XX. As Lavandarias de Madalena ganharam recentemente visibilidade com a publicação do livro Pequenas Coisas como Estas (2022), da irlandesa Claire Keegan, que dá a conhecer o drama de uma das vítimas destas instituições que se mantiveram ativas até ao final da década de oitenta do século XX. O livro viria a ser adaptado ao cinema por Enda Walsh e direção de Tim Mielants, em 2024.
Quando cheguei à cidade, em 1985, justamente no ano em que decorre a ação do filme, lembro-me de ver uma ou outra mulher à porta. Residentes ou visitantes, sobre elas nada sei. O que hoje lamento. Braga transbordava de edifícios conventuais e de espaços de clausura pelo que este era, para mim, apenas mais um. De resto, um edifício austero, discreto, sem outra nota digna de registo para além da pedra de armas do arcebispo, do emblema das convertidas e das janelas gradeadas do torreão.
Deu o sol muitas voltas à terra, e eu sem dar pelo edifício. Até que um dia o encontro com a obra de Maria Ondina Braga, nascida a dois passos do Recolhimento, me fez dar de caras com as paredes brancas de alvenaria e escutar as vozes para lá da alvura. O destino de solidão e de exílio destas mulheres assombraria para sempre a escritora que procurou dar corpo, voz, um nome, a este e a outros silêncios na sua escrita, às “histórias, sempre histórias do infortúnio das mulheres”, dos seus dramas ocultos, atravessados pela temática da miséria e da violência, do aborto clandestino e da desigualdade social. A história da “Mil-Homens” é apenas uma delas.
Recolhimento, oração e trabalho marcavam o compasso dos dias. A troco de um prato de comida, de um catre onde dormir e de reabilitação social, as mulheres viam-se confinadas ao mutismo e à clausura, impedidas de qualquer contacto com o exterior, como demonstra a grade de ferro que separa os fiéis na Capela de São Gonçalo (aberta ao culto geral) das “convertidas” que assistiam à missa: tão apertada a malha ou treliça de ferro que nem um dedo conseguiria passar e tocar o outro lado. Quando, pela primeira vez, transpus a porta do Recolhimento, estremeci, como se levasse um murro no estômago. Quem ainda hoje visitar o Recolhimento das Convertidas ficará impressionado, entre outras coisas, com a dupla porta do edifício e as sete chaves da porta interior, descobrindo que, mais do que uma expressão idiomática, “estar fechado a sete chaves” é antes o testemunho de um exílio forçado. Ou com o “Tronco”, cubículo em pedra, frio, húmido e sem luz, onde eram encerradas as mulheres que mereciam “castigo”. Ou com os instrumentos de penitência e de "conversão" - “haec sunt arma melitiae nostrae”- pintados no painel central do teto da Capela.
Entrar no espaço reservado da capela é descobrir que as grades são a rasura do olhar e a impossibilidade do tato e da comunicação, de uma qualquer grafia migrante. Elas são a trama do silêncio, as linhas de uma invisível escrita da solidão. Percorrer os espaços íntimos, corredores, celas e jardins é viajar numa máquina do tempo, recuar a esse elegante século XVIII e vislumbrar pelo buraco da fechadura o avesso da sumptuosidade aristocrática, da religiosidade barroca, despojadas de doces cupidos e anjos celestiais, quando não do próprio Cristo saudoso de um calor mais humano. Apesar das ruínas de hoje, tudo permanece intacto, suspenso, como se o tempo tivesse poupado este oásis de silêncio no deserto da cidade, ele próprio cúmplice destas mulheres condenadas à burka invisível do anátema social.
É este espaço que urge agora salvar e preservar como espaço de memória para as gerações futuras. A proposta de criação da Casa da Memória da Mulher no Recolhimento das Convertidas merece todo o apoio, desde logo por se tratar de um espaço único (tanto quanto julgo saber) no país, tendo em conta que não foi adulterado ao longo do tempo. Pela carga simbólica, histórica e cultural de que se reveste, a futura Casa da Memória da Mulher legitimamente merece figurar ao lado de espaços congéneres europeus, como é o caso do Køn – Gender Museum (The Women’s Museum), em Aarhus, Dinamarca, um dos raros museus do mundo sobre a temática de género e igualdade, fundado em 1982, e um dos pontos de atratividade turística da cidade.
Depois de anos de abandono, que esta proposta conjunta de várias entidades e personalidades ligadas à cultura, ao património, à intervenção cidadã e à comunidade académica tenha finalmente avançado e sido apresentada às entidades com capacidade de intervir na matéria é um sinal de esperança. A sua concretização seria não apenas uma forma de prestar homenagem às mulheres de todos os tempos, mas também uma das melhores notícias no ano em que Braga se orgulha de ser Capital Nacional de Cultura e o Recolhimento das Convertidas completa mais de trezentos anos de história e de memória.
Isabel Cristina Mateus
Universidade do Minho/CEHUM
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