INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2023 comemorou 46 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

terça-feira, 26 de maio de 2020

ENTRE ASPAS: "PATRIMÓNIO CULTURAL: TEMA & VARIAÇÕES"

Ademar Ferreira dos Santos (1952-2010) deixou-nos abruptamente fez 10 anos no passado dia 22. Foi um dos grandes protagonistas da vida da ASPA e continua a fazer-nos muita falta. Entendemos recordá-lo na coluna Entre Aspas, no Diário do Minho, para a qual o Ademar escreveu largas dezenas de textos, tornando de novo público um dos seus escritos um tanto esquecido, mas que mantém uma actualidade plena. Trata-se do prefácio ao volume das “Conclusões” do 2º Encontro das Associações de Defesa do Património Cultural e Natural, realizado em Braga em Abril de 1981, do qual ele foi o secretário-geral e um dos grandes animadores.

"PATRIMÓNIO CULTURAL: TEMA & VARIAÇÕES"
Pretexto de ocupação dos tempos livres? Passatempo para a terceira-idade? Capricho estético-cultural de novas seitas de iluminados? Culto da miséria e da pobreza? Fobia do progresso? Tentação pela aurea mediocritas? Saudosismo? Revivalismo? Reaccionarismo? Terapia de grupo? 
Num juízo apressado, tais qualificativos podem servir (e têm, efectivamente, servido) para caracterizar, subvalorizando, todos os programas e projectos de salvaguarda, recuperação e revitalização do nosso património cultural. Mas num país predisposto a rejeitar, por sistema, tudo aquilo que é novo e em que a inércia colectiva só consente tréguas ao discurso fácil do deve & haver e à dinâmica subterrânea dos pequenos negócios e das grandes negociatas — aquelas críticas não surpreendem. A História em bruto não tem qualquer valor de mercado e cultura, sim, mas devagar! País pobre não pode viver, eternamente, a saracotear-se ao espelho e da grande História o povo só apreende... a necessidade da multiplicação dos pães. Dizem... Só que... Só que ninguém vive em permanente conflito com a sua memória, com os seus olhos, com o seu passado. Porque tudo o que é presente e futuro traz dentro de si, a marcá-lo, urna história. E sem raízes bem sólidas e bem fundas, não há árvore de porte altivo ou discreto que se segure de pé. Além do mais, porque é pelas raízes que ela se alimenta e ganha força para se afirmar. 
Os povos são como as árvores. Se cortam com as suas raízes, mais tarde ou mais cedo, estiolam, tornam-se dependentes do acaso, paralisam. Defender o património cultural dum povo — é, precisamente, como que proteger as raízes de uma árvore, é garantir, mais do que o seu presente, o seu futuro, o seu alimento. O progresso tem rosto. Tem um cartão de identidade. Tem um corpo e uma alma. E se queremos continuar a dizermo-nos portugueses e povo independente — essas componentes do progresso terão de ser... genuinamente portugueses. Isto é, o progresso terá de ir beber às origens (às raízes da nossa cultura e da nossa história) — a sua matriz própria, as suas impressões digitais, a sua assinatura, o seu retrato. Poderemos ser pobres, a carência de meios e a falta de recursos poderão ser dramáticas, a dívida externa poderá piscar o olho à bancarrota. Mas há uma riqueza muito elementar que temos e devemos preservar a todo o custo e rentabilizar — a de sermos portugueses e portadores ou herdeiros de uma cultura antiga e sui generis. Uma cultura que não é susceptível de avaliação em dólares ou marcos, que não é alienável. Porque não queremos viver, como povo, «sem tecto, entre ruínas», mobilizámo-nos para reconstruir, recuperar e dar uma nova vida ao nosso património. Para salvar o nosso passado. A nossa História. A nossa cultura. O nosso bilhete de identidade — passaporte para o futuro. 
Nas escolas, a juventude vai descobrindo, talvez, como se ligam as árvores à terra. Como se alimentam e se firmam de pé. Mas alguém ensinará essa juventude como se liga o presente colectivo ao nosso passado, à nossa história? Alguém lhe ensinará como do conhecimento e da recuperação das nossas raízes culturais depende o futuro? Estarão os programas e os currículos sintonizados com essa urgência nacional de preservação e valorização da nossa herança cultural? Estarão os professores atentos e sensibilizados para a necessidade imperiosa de defesa e divulgação do nosso património? Para a necessidade de recuperação e reabilitação dos centros históricos das nossas cidades e vilas? Para a necessidade de afirmação de uma outra e bem diferente «qualidade de vida»? Para a necessidade de protecção, divulgação e estímulo da nossa riquíssima cultura popular? 
Um mundo de questões e de dúvidas — e a certeza de que há uma verdadeira revolução no ensino por fazer. 
Com efeito, é nas escolas que se joga e se decide o nosso futuro (a nossa independência) como povo. É nas escolas que se traça o destino da nossa cultura, do nosso património. 
Bem pouco valerão os esforços do governo, do parlamento, das autarquias, das associações — se as escolas e os programas de ensino estiverem de costas voltadas para o homem, para o meio, para a cultura e a crítica, para a vida. 
Não basta descentralizar o executivo, regionalizar e desburocratizar o poder — é imperioso e urgente, antes de mais, nacionalizar e humanizar o nosso ensino. Pô-lo ao serviço da nossa história, do nosso presente e do nosso futuro. Ao serviço dos efectivos interesses do nosso povo, da nossa cultura. 
Progresso, sim, e depressa (naturalmente) — mas vestido das cores de Portugal e à medida do nosso corpo. Equilibrado. Harmónico. Saudável. 
E por mais voltas que dermos, a uma conclusão muito singela acabaremos sempre por chegar — é nos bancos das escolas que melhor se defende e assegura o futuro do nosso património cultural e natural. 
Depois da escola, a associação. A teoria e a prática que se interpenetram 
A associação não se substitui ao Estado, nem pretende confiscar-lhe as competências e as responsabilidades. A ela, cabe um papel supletivo, complementar — quer em relação aos poderes públicos, quer em relação às escolas. 
Em relação aos poderes públicos, porque lhes cabe a vigilância, o rastreio, a denúncia das situações de crise; porque lhe compete o controle permanente da intervenção do Estado ou da sua inércia; porque pressiona os organismos oficiais, faz propostas, sugere soluções, apoia ou critica a resolução dos problemas concretos. 
Em relação às escolas, porque lhes fornece a experiência imprescindível duma prática local de prevenção e sensibilização; porque constitui um espaço privilegiado de intervenção e animação culturais e de reflexão colectiva; porque prolonga a aprendizagem escolar e sintoniza-a com as exigências concretas do meio; porque organiza os esforços de todos aqueles que não aceitam defender o património apenas por palavras e querem, coerentemente, passar à acção. Concebida deste modo, a associação de defesa do património desempenha um papel e cumpre uma função de primordial importância e merece, por isso, todo o apoio quer da parte do Estado, quer da parte das populações. 
Se a expressão «património cultural» tem hoje algum sentido útil e faz já parte da linguagem corrente da grande maioria dos portugueses — tal deve-se, sem sombra de dúvida, à acção eminentemente pedagógica que tem sido desenvolvida, desde 1976 e por todo o país, pelas Associações de Defesa do Património. Em cinco anos, as ADPs alargaram extraordinariamente o seu campo de intervenção e o seu espaço de influência, contribuíram para o salvamento e a recuperação de um sem-número de bens e valores patrimoniais, apoiaram o governo e as autarquias com centenas de propostas e sugestões, sensibilizaram milhares e milhares de portugueses para a necessidade de preservação da nossa herança cultural. Não será, por isso, decerto muito fácil encontrar em Portugal corrente associativa que tenha desenvolvido em tão curto espaço de tempo uma actividade tão fecunda e uma acção tão mobilizadora. Infelizmente, nem sempre os poderes públicos têm dado ouvidos às propostas e sugestões das ADPs e muito do trabalho das associações tem-se perdido por incúria, desleixo, ignorância ou má vontade dos organismos oficiais. Oxalá que com as presentes Conclusões não suceda o mesmo. 


Ademar Ferreira dos Santos
Braga. Outubro de 1981.
Visita da ASPA ao Mosteiro de Rendufe
Salão Egípcio. Ação no âmbito do pedido de classificação

Mais informação sobre o "Mosteiro de Tibães":

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