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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

COMO A QUADRA NATALÍCIA PODE IMPLICAR A PERDA DE BIODIVERSIDADE

Com a aproximação da quadra natalícia, importa questionar o uso de musgo e de azevinho, tanto para o presépio como para ornamentação. É um hábito antigo, mas não é compatível com as preocupações ambientais atuais em matéria de biodiversidade.

Neste Entre Aspas, publicado em dezembro de 2019, Catarina Afonso alerta para os riscos da recolha de musgo e de azevinho, nesta época do ano, e faculta informação importante sobre estes dois exemplares da flora nativa da região. 


Como a quadra natalícia pode implicar a perda da biodiversidade

Em muitas culturas ocidentais, o azevinho (Ilex aquifolium) é um dos símbolos da quadra natalícia. A tradição de usar o azevinho em decoração natalícia é tão antiga que se pensa que a sua origem remonte a costumes associados aos festejos de Solstício de Inverno (Yule) dos povos pagãos antigos e, mais tarde, incorporados nas festas em honra de Saturno, da Roma Antiga. Durante estas festividades celebradas em dezembro, as casas eram decoradas com coroas de folhagem vivaz, essencialmente ramos de azevinho, gilbardeira (Ruscus aculeatus) e hera (Hedera helix). Posteriormente, também as celebrações cristãs do Natal começaram a usar os enfeites e coroas de azevinho.

Na verdade, o uso do azevinho em todas estas tradições de diferentes origens deve-se muito provavelmente ao simples facto de não existirem flores espontâneas coloridas durante o Inverno no Hemisfério Norte. Os frutos vermelhos brilhantes, que sobressaem entre o verde intenso e lustroso dos ramos, fazem com que este arbusto tenha sido escolhido, por tantas culturas e desde há tanto tempo, como ornamento e símbolo desta época do ano.

Sendo tão procurados durante esta quadra, os ramos de azevinho são cortados, muitas vezes sem critério, debilitando os exemplares desta espécie. Sendo uma espécie dióica (há plantas machos e plantas fêmeas), são sobretudo as árvores fêmeas (as que têm os frutos vermelhos) as que mais são procuradas e mutiladas, precisamente na fase de crescimento em que não deve ser colhida (fase de fruto, que dará origem a nova planta). Por isso, e por haver risco de extinção enquanto espécie de ocorrência natural, publicava-se, há precisamente 30 anos, em Diário da República, o Decreto-Lei n.º 423/89 de 4 de Dezembro, a lei que proíbe totalmente o arranque, o corte total ou parcial, o transporte e a venda do azevinho espontâneo.

Lê-se no decreto: “O azevinho tem sido tradicionalmente usado como ornamento característico da quadra natalícia, o que motiva uma procura (…) cada vez mais intensa nos poucos locais onde ainda é possível encontrá-lo espontâneo (…) praticando-se, sistemática e indiscriminadamente, uma desrama quase ou mesmo total, que provoca a morte das plantas, muitas vezes exemplares de grande beleza e raridade, com várias centenas de anos.”

O azevinho, cujo habitat mais favorável são os bosques sombrios e protegidos de montanha até aos 1600 metros, é uma das poucas espécies cuja densa folhagem permanece verde durante os meses mais frios do ano, enquanto que as árvores de folha caduca, como os castanheiros e os carvalhos, perdem as suas folhas. É entre e sob a folhagem do azevinho que aves, lebres e outros animais encontram abrigo contra o rigor do Inverno e se refugiam de predadores. Os seus frutos, embora tóxicos para humanos e animais domésticos, são uma importante fonte de alimento para abelhas e aves, e a sua casca é apreciada pelos coelhos. A presença do azevinho nos bosques e carvalhais tem, assim, uma elevada importância na subsistência de muitas espécies de animais durante o Inverno.

Em Portugal, o azevinho é uma espécie de crescimento lento, que pode viver centenas de anos e atingir mais de 10 metros de altura. Actualmente aparece em áreas de maior protecção do património natural, mas que permanecem ameaçadas pela destruição quer por fogo, quer por corte para satisfação da enorme demanda de mercado na época natalícia.

Como consequência da diminuição do azevinho, começou a verificar-se a colheita abusiva de gilbardeira (Ruscus aculeatus), também chamada de falso-azevinho, que possui folhagem vistosa e frutos de inverno também vermelhos, e do teixo (Taxus baccata), outrora muito abundante por toda a Europa, mas hoje considerado uma espécie em vias de extinção. Ambas as espécies se encontram abrangidas por legislação europeia sob a Diretiva Habitats (92/43/CEE), que contempla espécies de interesse comunitário cuja conservação é objecto de medidas específicas de gestão e/ou protecção.

Mas a quadra natalícia representa também uma ameaça a outras plantas – os briófitos. Os briófitos são um conjunto de plantas que não possuem verdadeiras raízes, caules ou folhas e nunca produzem sementes, flores ou frutos. Os musgos incluem-se neste grupo de plantas, que são consideradas as mais primitivas plantas terrestres.

Estas plantas armazenam grandes quantidades de água e têm a capacidade de libertá-la lentamente para o ambiente circundante, tendo um papel fundamental nos ciclos de nutrientes e da água na maioria dos ecossistemas. Têm também uma função relevante na acumulação de biomassa, retenção de dióxido de carbono e prevenção da erosão do solo. Para além disso, albergam uma microfauna muito diversa. Os briófitos são ainda usados como bioindicadores ambientais, uma vez que desaparecem em ambientes poluídos, sobrevivendo em zonas de boa qualidade aquática e atmosférica.

Conhecem-se mais de 700 espécies de briófitos em Portugal, mas o facto de serem organismos associados a condições ecológicas muito particulares faz com que cada espécie ocorra apenas em áreas muito restritas. Assim, muitas das espécies são já raras e outras encontram-se ameaçadas devido à destruição dos seus habitats, por acção antropogénica directa (como o caso da drenagem das turfeiras onde se encontram vários musgos) e também pelas alterações climáticas.

Em Portugal, a protecção dos musgos limita-se apenas aos musgos do género Sphagnum e, de modo genérico, às turfeiras, que são abrangidos pela Directiva Habitats. Apesar disso, mas talvez devido à ausência de legislação própria para a sua protecção, com aplicação de coimas e multas para as infracções, ocorre nesta época a colheita indiscriminada de musgos e outros briófitos para decoração dos presépios, fazendo com que a quadra natalícia seja mais um dos factores a contribuir para que estas plantas estejam a tornar-se cada vez mais raras.

Catarina Afonso

(Bióloga. Doutoranda no Instituto Superior de Agronomia da Universidade Lisboa)

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Mais informação: https://natural.pt/news/natal-sem-musgo?locale=pt

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