O SOLO É UM RECURSO NÃO RENOVÁVEL!
Entrou em vigor, em 29 de janeiro, o Decreto-Lei n.º 177/2024, conhecido na opinião pública como a alteração à Lei de Solos, assim se designando a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo (LBGPPOTU). Este Decreto-Lei, em revisão na Assembleia da República, tem merecido um acalorado debate político. Aquando da sua promulgação, o decreto-lei foi qualificado pelo Presidente da República como “entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”.
Recordemos o essencial do Decreto-lei: a partir da sua entrada em vigor é possível a construção em solo rústico e solos que têm classificação como REN (Reserva Ecológica Nacional) e RAN (Reserva Agrícola Nacional), considerando algumas condicionantes: as áreas de construção devem ser em “solos compatíveis com área urbana já existente, obedecendo a uma lógica de consolidação e coerência”; pelo menos 70% da área total de construção acima do solo deve destinar-se a habitação pública ou a habitação de valor moderado, sendo estabelecida uma fórmula para o cálculo do valor máximo do preço dos terrenos (até 75% da mediana do preço no concelho); as Assembleias Municipais deliberam sobre a capacidade construtiva, sob proposta da câmara municipal.
Interessa-nos menos analisar os termos do debate político sobre esta legislação do que os argumentos aduzidos por especialistas e peritos em urbanismo, ambiente e economia. E, sobre este ponto, há que assinalar a existência de um alargado consenso contra a “Lei dos Solos”.
E porquê? “Não existindo uma única razão baseada no interesse público que justifique a aprovação da lei, sabemos hoje que a entorse promulgada pelo senhor Presidente constitui (…) o maior atentado ao sistema de ordenamento do território e de gestão territorial praticado neste século no nosso país”, responde José Carlos Guinote (Doutorado em Urbanismo). Na verdade, o argumento da indispensabilidade da ocupação dos solos rústicos para aumentar a capacidade construtiva esbarra com duas constatações básicas: primeira, em Lisboa e no Porto, onde as carências habitacionais são maiores, não há solo rústico para reclassificar…; segunda, de acordo com o Relatório do Estado do Ordenamento do Território, de 2024, no interior dos perímetros urbanos há em média, no continente, cerca de 50 por cento de solos urbanos que não foram utilizados, para além dos inúmeros edifícios devolutos, públicos e privados que enxameiam os centros urbanos.
Tudo isto, “no país da desgraça urbanística de muitas áreas costeiras, da excessiva impermeabilização dos solos e do crescimento desregrado de urbes sem planeamento, sem espaços verdes, sem equipamentos públicos, sem infraestruturas de transporte. Isto, no país da trágica história de captura de governos municipais por interesses do setor imobiliário, fonte inesgotável de casos de corrupção e de problemas de (des)ordenamento do território.” (Susana Peralta, professora de Economia).
Por outro lado, como afirma o bracarense Manuel Miranda, Presidente do Conselho Diretivo da Associação Portuguesa de Urbanistas, a aplicação deste regime “não conseguirá contribuir para contenção dos preços da habitação, mesmo nas áreas urbanas periféricas; pelo contrário, o seu único efeito palpável será uma potencial proliferação fragmentada de novas urbanizações e empreendimentos imobiliários em solo rústico, viabilizáveis sem avaliação da sua necessidade e aceitabilidade com base em critérios consistentes, mas sim a reboque das dinâmicas de um mercado imobiliário em roda livre.”
Os efeitos na agricultura, no ambiente e na paisagem serão devastadores, como alerta o ambientalista Pedro Bingre do Amaral, Presidente da Liga para a Protecção da Natureza: “com estas novas alterações, corremos o risco de manter as carências de habitação, ao mesmo tempo que prejudicamos a agricultura, a floresta e ambiente”. Ou, como afirma Ana Rodrigues, Diretora-Executiva do Centro de Conhecimento de Economia do Ambiente da Nova SBE: “Os terrenos rústicos, tradicionalmente destinados à agricultura, conservação ambiental e atividades de baixa intensidade, desempenham funções ecológicas essenciais, como a regulação do clima, o sequestro de carbono, a purificação da água e a proteção contra inundações. (…) A conversão dessas áreas para usos urbanos reduz ou elimina essas funções, substituindo bens públicos de alta relevância por benefícios económicos privados de curto prazo”.
O solo é um recurso não renovável. A flexibilização da classificação dos solos, ao permitir usos não compatíveis com a sua conservação, compromete um recurso que demora muito tempo a formar-se e que é fundamental para a agricultura e serviços do ecossistema. Uma política sensata de gestão dos solos deve ter a preocupação de suprir as necessidades urbanas com uma maior ênfase em zonas menos adequadas para a agricultura, deixando de lado espaços que além de férteis estão normalmente situados em leitos de cheia. A longo prazo, o comprometimento de solos de boa qualidade agrícola terá impacto nos serviços de ecossistema, ou seja, os benefícios que as populações humanas obtêm da natureza e dos serviços que esta presta, desde a polinização à redução do risco de incêndio e erosão dos solos, até à melhoria da qualidade do ar e da água; também o benefício para a proteção da biodiversidade.
Em suma, a “Lei dos Solos” constitui uma ameaça séria ao ambiente, potencia o urbanismo caótico nas periferias urbanas, favorece a especulação imobiliária, vai potenciar o aumento dos preços dos terrenos rústicos e da habitação e prejudica profundamente a paisagem. As ameaças que hoje impendem sobre as Zonas Especiais de Proteção (ZEP) dos edifícios e sítios classificados como património edificado (ZEP essas cujo alargamento constituiu, aliás, motivo de reivindicação unanimemente formulada no recente Fórum de Património, realizado em Braga), são, por seu turno, também fortemente reforçadas com as possibilidades mais perversas da nova legislação. Um dia destes, teremos os palácios e conventos, os castelos e capelas, os mosteiros e os sítios arqueológicos rodeados de prédios por todos os lados.
Como afirma a arquiteta Helena Roseta: “Cabe-nos a nós, cidadãos, alertar a opinião pública para esta grande “entorse” ao nosso sistema de planeamento, que abre intempestivamente novas oportunidades para a desordem territorial e para o agravamento do preço da habitação.”
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