INTERVENÇÃO CÍVICA EM DEFESA DO PATRIMÓNIO

A ASPA criou este blogue em 2012, quando comemorou 35 anos de intervenção cívica.
Em janeiro de 2024 comemorou 47 anos de intervenção.
Numa cidade em que as intervenções livres dos cidadãos foram, durante anos, ignoradas, hostilizadas ou mesmo reprimidas, a ASPA, contra ventos e marés, sempre demonstrou, no terreno, que é verdadeiramente uma instituição de utilidade pública.
Numa época em que poucos perseguem utopias, não queremos descrer da presente e desistir do futuro, porque acreditamos que a cidade ideal, "sem muros nem ameias", ainda é possível.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

ENTRE ASPAS "RECOLHIMENTO DAS CONVERTIDAS. Um imperativo de consciência pela defesa do património cultural"

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Em março de 2019, como elemento do Conselho Estratégico para a Regeneração Urbana de Braga (CERPUB), a ASPA manifestou-se negativamente no que diz respeito à solução arquitetónica e urbanística constante do Pedido de Informação Previa (PIP) do Hotel Plaza Central, designação inicial do hotel. Enviou as razões da decisão ao senhor Presidente da Câmara Municipal de Braga, e partilhou através de um “entre aspas”, publicado a 29 de abril de 2019. Foram várias as tomadas de posição e “entre aspas”, de 2019 a 2024, sob o ponto de vista patrimonial e ambiental.


Era uma vez uma cidade que vai ser capital portuguesa da cultura (2025) e que é candidata a capital verde europeia (2026). Que tem um monumento barroco, da primeira metade do século XVIII - Recolhimento de Santa Maria Madalena ou das Convertidas - na sua praça mais central, classificado de interesse público.

Nesta cidade, conhecida por “Capital do Barroco”, assistimos à construção de uma unidade hoteleira de volumetria desproporcionada e pastiche, contigua ao monumento, a poucos metros da sua Cerca e em plena Zona Especial de Proteção. ZEP que, segundo a Portaria nº 665/2012, de 7 de novembro, “tem em consideração a sua implantação numa área da cidade perfeitamente consolidada, onde outros edifícios com interesse arquitetónico contribuem para a valorização do imóvel e a sua fixação visa salvaguardar alguns dos imóveis da frente urbana da Avenida Central, bem como toda a Rua de São Gonçalo que, por ser bastante estreita, estabelece uma relação direta com o imóvel.”.

 

Que exemplaridade pode esta cidade dar aos seus jovens, às entidades avaliadoras europeias do património e ambiente, e à cidadania, com uma obra paredes meias com um monumento protegido e que motivou pedido de embargo da DRCN (junto da CMB)? Obra que impermeabilizou parte deste quarteirão urbano e irá aumentar a concentração de trânsito no centro histórico, apesar de a cidade se ter comprometido a reduzir as emissões de CO2 em 55%, até 2030!

 

Onde está o jardim interior que constitui área de cedência pública ao Município mas, para o qual, não existe acesso desde início? Será que o único objetivo é a intenção de desmembrar a Cerca do Recolhimento para dar servidão à logística do hotel, através da rua de S. Gonçalo, com apropriação de património cultural público?! Essa intenção não nos passou despercebida no projeto inicial, que também anunciava 110 quartos e 35 lugares de garagem, entre outros espaços habituais numa unidade hoteleira desta dimensão.

Depois do erro urbanístico consumado, será que o edificador tem em vista tornar-se num generoso mecenas, prontificando-se a fazer aquilo que as entidades públicas não foram capazes de fazer até agora? Desejará o monumento, ou parte dele, para tornar mais “in” a oferta hoteleira que edificou com entrada junto à Capela do monumento?! Isso seria mais um atentado ao património de todos os bracarenses, uma feia reescrita da história em pretender apagar a memória da condição feminina e a luta dura das mulheres pela sua dignidade e emancipação!

 

O Recolhimento revela deterioração, visível do exterior, o que obrigou à caridade dos hoteleiros meeiros em caiar uma parede para a fotografia da cerimónia da inauguração. Esqueceram a outra parede?!

Perturba, porque recorda a pobreza de que ainda há memória, a miséria feminina desprotegida, mas sobretudo, a exploração da mulher aos níveis mais baixos que a história nos testemunha. As Convertidas são uma memória viva e continuada de um passado que não pode ser mitigado ou esquecido. De facto, a pobreza recorda-nos a população mais desprotegida, nomeadamente doentes, crianças e mulheres carenciadas; não casa bem com a hotelaria, pois sabemos que a magia dos hotéis é fazer-nos sentir ricos e bem tratados.

 

Quem habita esta cidade saberá que o valor do Recolhimento das Convertidas, a Capela de São Gonçalo e a Cerca e os seus altos muros valem por todo o seu conjunto? Uma integralidade à qual deve ser adicionada a intangibilidade da memória constituída pela sua função contínua de cerca de 300 anos! Importa lembrar que este conjunto é uma pérola do barroco conventual, único em Portugal e, por isso mesmo, o Estado Português lhe atribuiu a classificação de Monumento de Interesse Público.

Os corredores estreitos e as celas exíguas, bem como o coro-alto, separado por crivaria, onde as mulheres assistiam à missa que decorria na Capela de São Gonçalo, sem serem vistas, permite-nos construir um imaginário de vivências dessas mulheres, desde o início do séc. XVIII, que estavam afastadas da vida urbana que rolava fora de muros. O seu quotidiano, bem como o isolamento a que estavam sujeitas, e o modo como ocupavam a sequência de dias e noites, têm sido motivo de estudo por académicos e artistas.  Toda uma atmosfera frágil que gera um ambiente único, mesmo a nível europeu, permitindo aos visitantes viajar no tempo, sentirem-se privilegiados por poder desfrutar, também, desse património imaterial, que nenhuma simulação, multimédia, ou artificialidade hoteleira é capaz de substituir.

O termo “Convertidas” está, pois, associado a sofrimento, tristeza e isolamento!

 

Desafiamos cada bracarense a chegar às suas próprias conclusões.

Neste momento será possível afirmar que a ZEP foi respeitada?

Será possível afirmar que foi respeitada a segurança, integridade e monumentalidade, bem como a cércea do Recolhimento das Convertidas?

A Capela de São Gonçalo encontra-se segura? Então, porque motivo ainda não são permitidas as visitas?

 

Lembramos que compete ao atual Executivo Municipal e ao Património Cultural, I.P., respeitar a classificação desta pérola do barroco conventual.

 

A defesa do Recolhimento das Convertidas, da Capela de São Gonçalo e da Cerca de muros altos que protege este conjunto com distinção de âmbito nacional, é um sonho de muitos bracarenses. O monumento é património dos bracarenses e de Portugal, constituindo um genuíno repositório da história da exploração da mulher, pelo que deve ser preservado pela sua memória material e imaterial para resgate às futuras gerações.

Salvemos o nosso património!



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