São lancinantes as imagens que nos chegam da Ucrânia. A guerra declarada pela Rússia ao seu país vizinho traz-nos diariamente a casa o rosto sofredor das famílias desfeitas, as crianças exaustas, os cadáveres mal cobertos sobre as ruas, os edifícios incendiados, as cidades devastadas, o rastro de aviões portadores da morte e, sobretudo, essa arrepiante sensação de que tudo pode ser ainda pior e de que a imprevisibilidade total nos coloca perante o desmoronamento de sonhos, aspirações e projetos de futuro.
Uma situação como esta, mal explicada pelas tradicionais análises geoestratégicas, coloca-nos perante a incredulidade face ao desvario do conflito letal de interesses e da expansão de traumas mal resolvidos no inconsciente coletivo onde se exprimem as pulsões nacionalistas e os seus protagonistas mais ou menos perversos.
Para uma associação de defesa do património, para além da solidariedade que é devida aos povos agredidos, seja pela violência dos mísseis e das balas, seja pelo abafamento violento da voz de quem deseja a paz e condena o poder belicista, a guerra permite enunciar dois níveis de luta.
O primeiro, imediato, consiste na defesa, pelos meios possíveis, nomeadamente através da criação de uma opinião pública mobilizada e consciente, daquilo que é o património construído, que se encontra ameaçado pelo poder destrutivo das forças invasoras. A Ucrânia tem sete monumentos ou sítios que são considerados pela Unesco como património cultural da humanidade. A enumeração desses monumentos ou sítios, bem como um olhar sobre a sua localização (nomeadamente na capital assediada e junto ao Mar Negro, em chamas), mostra bem como a sua destruição, total ou parcial, constitui a ameaça real de mais um crime contra a humanidade. Os sete monumentos e sítios património mundial da UNESCO em território ucraniano são: a Catedral de Santa Sofia, em Kyiv, erguida no século XI; o centro histórico de Lviv; o Arco Geodésico de Struve, junto ao Mar Negro; as florestas primárias de Faia dos Cárpatos; a Residência dos Metropolitas da Bucovina e da Dalmácia, erguido em Chernivtsi na segunda metade do século XIX; a Cidade Antiga de Queroseno e sua Chora, colónia grega fundada há 2500 anos; e as Tserkvas de madeira dos Cárpatos, igrejas católicas e ortodoxas erguidas em madeira entre os séculos XVI e XIX. É certo que a Convenção de Haia, de 1954, defende o património em caso de guerra, mas todos sabemos como todas as convenções e tratados já foram violados nesta guerra. Aliás, para além do património inventariado pela UNESCO, muito outro património nacional foi já destruído ou severamente afetado. É o caso de igrejas, bibliotecas e mesmo museus, como é exemplificativo o incêndio do museu de Ivankiv, localidade a noroeste de Kyiv, com obras de Marria Prymachenko, artista ucraniana que foi homenageada em 2009 pela UNESCO. A cidade de Chernoihiv, cujo centro histórico está também em processo de candidatura a património mundial da UNESCO, está agora seriamente danificada, sendo mais uma das cidades históricas mártires.
Mas há um segundo nível de luta pela defesa do património, em situação de guerra. Esse é um nível mais geral e enquadra-se na promoção ativa da paz como património comum da humanidade. Alguns bens materiais e imateriais comuns ganharam o estatuto de património comum da humanidade, o que significa que devem ser protegidos por países e cidadãos, não podem ser apropriados por interesses particulares, sejam individuais ou coletivos, são defendidos como tal no direito internacional e devem ser usufruídos por todos. São bens comuns materiais, por exemplo o ar, a água, os oceanos, a biodiversidade, o espaço sideral, todo o património cultural e ambiental reconhecido pela UNESCO. Discute-se ainda. a patrimonialização universal de sítios como a Amazónia e as zonas polares. Os principais bens imateriais são as línguas e as culturas. Podemos associar-lhes, pelo seu reconhecimento universal e pelo facto de terem na Organização das Nações Unidas (ONU) a sua agência de salvaguarda e proteção, os direitos humanos e a paz.
A paz é, de facto, o primeiro e único fundamento para a criação, primeiro da Sociedade das Nações e, depois da 2ª guerra mundial, da ONU. Constituiu-se, na sua carta fundadora, como um bem comum inalienável. O simples facto da existência de guerra da Ucrânia, que sucede ao encadeamento sucessivo de conflitos bélicos contínuos nos últimos setenta anos (da guerra da Coreia ao Vietnam, do Sinai e da Palestina ao Líbano, das Maldivas a Caxemira, dos Balcãs ao Iraque, do Afeganistão à Síria, das guerras coloniais aos conflitos interétnicos na África subsariana), demonstra como este património, à semelhança do património edificado, tem os seus predadores. São eles os interesses económicos de uma sociedade sustentada numa economia destruidora do ambiente natural e na disputa competitiva pelas fontes de energia, pelas matérias primas, pelos recursos naturais e pelos mercados onde se possam escoar os produtos e obter os lucros máximos. São os nacionalismos exarcebados, que confundem a diferença legítima das identidades com as posições supremacistas e xenófabas. É a recusa de uma orientação multilateral na regulação internacional e a predominância das lógicas imperialistas. São os interesses das indústrias armamentistas e a cultura belicista dos senhores da guerra e dos arautos da morte. É o fanatismo das crenças, religiosas, ideológicas ou filosóficas. É, sobretudo, a desumanidade profunda de quem substitui à fraternidade universal a vontade da opressão e do domínio do outro.
Perante as atrocidades da guerra, nunca a defesa da paz como património comum da humanidade ganha tanta atualidade e urgência. Mesmo que a modéstia da nossa voz nos doa face à desmesura do poder das balas.
Manuel Sarmento
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