Incentivar os cidadãos a escrever sobre momentos marcantes das suas vidas, como a infância, a juventude, o percurso profissional ou a família, pode culminar na criação de um livro coletivo de memórias. Foi o que aconteceu quando, no ano letivo de 2022/23, nos propusemos iniciar, ainda que com algum espírito experimental, a disciplina de Memórias e Autobiografias na recém-criada Academia Sénior pelo município de Braga.
Começando com uma partilha de experiências sobre as memórias mais significativas na vida de cada um, o projeto foi ganhando forma e deu mote a um empenho surpreendente na produção da escrita e na descoberta de imagens (fotografias e objetos) muito para além do inicialmente expectável. A infância, a escola primária, o primeiro ordenado, o namoro, o casamento, o nascimento dos filhos, o primeiro emprego, o antigo ultramar, o 25 de abril, as festas familiares e comunitárias, mas também a descoberta de capacidades criativas e de ficção que se revelavam adormecidas. Tudo convergiu para a produção do livro “Memórias e Autobiografias e os 50 anos do 25 de Abril” (2024) dividido em três capítulos: Memórias do Eu, Memórias do Nós (com relevo para o 25 de abril, nos 50 anos da sua comemoração) e Outras Memórias. São muitas as histórias vividas e recontadas e outras ainda recriadas a partir do exercício da recordação pessoal. Um projeto que busca preservar o Passado e simultaneamente criar Presente, num equilíbrio entre a preservação e a criação ativa.
O projeto também deu lugar à integração de desenhos elaborados por crianças (netos, bisnetos ou outras) que escutaram as histórias a partir dos familiares ou pessoas próximas e as ilustraram com a sua própria sensibilidade, fazendo-as tomar parte num projeto de valorização do diálogo intergeracional e da fixação da memória como património. Reconhecer as experiências dos outros desenvolve competências não só de atenção, escuta e empatia - fundamentais para o crescimento pessoal e social das crianças - como estimula a compreensão de que o passado é uma fonte de sabedoria e identidade que deve ser preservada. Na verdade, a valorização destes registos permite que novas gerações conheçam melhor os seus antepassados e compreendam o contexto das suas próprias vidas.
Por outro lado, refletir sobre o seu percurso permite aos mais velhos dar significado às experiências vividas e reconhecer a riqueza da sua história pessoal. A escrita e a partilha destas memórias ajudam a combater a solidão e estimulam a autoestima e o sentido da identidade. A memória, a organização do pensamento e a agilidade mental são também estimulados. O fortalecimento dos laços comunitários e o registo de tradições, valores e acontecimentos históricos, locais ou nacionais que, de outro modo, poderiam perder-se, são fundamentais para a preservação da memória coletiva.
Os 50 anos do 25 de abril celebrados enquanto procedíamos à organização do livro não podiam naturalmente deixar de ser realçados e integrados nas atividades. Há datas que moldam vidas. O 25 de abril é uma delas. Dar voz a quem o viveu é um dever de memória e os seniores da nossa Academia são os seus guardiões. “O 25 de abril na minha vida” foi o mote para os testemunhos diretos que cada um, sem exceção, prestou para a coletânea de gravações em vídeo que foram produzidas em plena sala de aulas na base de um curto guião elaborado para o efeito. O resultado final foi mostrado em público no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva nas vésperas da comemoração e, a convite da sua diretora, também integrado no depósito da Aqualibri, biblioteca digital do Cávado. No capítulo Memórias do Nós, figuram alguns desses registos incluindo poemas inspirados e até musicados pelos próprios, destinados a esse momento marcante. À medida que as recordações do 25 de Abril emergiam, surgiam das gavetas memórias adormecidas – fotografias, objetos e histórias – agora prontas para serem partilhadas. É exemplo um dos textos onde figura um isqueiro e uma máquina de barbear pertencentes ao militar morto junto à PIDE no próprio dia 25 de Abril de 1974, e se lê: “a revolução não teve só o vermelho dos cravos a dar-lhe cor, teve o sangue de quatro pessoas que se manifestavam na rua António Maria Cardoso em Lisboa, em frente ao edifício da PIDE/DGS”. O soldado em causa, afeto a Penamacor, encontrava-se em Lisboa de licença militar, o que só foi possível por ter obtido dinheiro emprestado para a viagem em troca dos dois objetos que penhoraram o valor do empréstimo. O militar não mais voltaria para os reaver pois, por ironia do destino, no mesmo dia em que Portugal recuperava a liberdade, quis o drama que não vivesse para a usufruir. No contexto deste livro, estes objetos, silenciosos, mas cheios de significado, tornaram-se pontos de partida para a narrativa aqui contada, fazendo desencadear recordações, emoções e histórias mais ou menos esquecidas, mas que são essenciais para a configuração de uma História mais plural, sentida e completa. Note-se que são, muitas vezes, os relatos pessoais que preenchem os silêncios e as omissões da narrativa dominante, trazendo à luz as vozes que raramente aparecem nos livros oficiais – vozes do quotidiano, das margens, das emoções vividas, dos detalhes que escapam às grandes narrativas…
A Academia Sénior tem assim um papel único enquanto guardiã de memórias vivas. Ao registar estas experiências, está a dar um contributo precioso à história local e nacional. Está a contribuir para que nos conheçamos melhor a nós próprios.
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