O ano novo inicia-se praticamente com as eleições legislativas. Um novo ciclo político, seja quais forem os protagonistas que os eleitores escolherem, vai agora iniciar-se. É a altura certa para que se definam as prioridades que o novo poder político deve assumir em matéria de património.
Em primeiro lugar, no
horizonte de quatro anos, a tarefa decisiva do poder democrático em matéria de preservação
e defesa do que é de todos deverá ser a da preservação desse património
comum da humanidade que é o ambiente sustentável. A degradação das
condições climáticas, por efeito do aumento do efeito de estufa associado a uma
economia assente na libertação de carbono para atmosfera, tem seguido um curso
imparável, com consequências catastróficas
do ponto de vista do aumento da temperatura média do planeta, do degelo das
calotes polares e crescimento dos oceanos (maior volume de água), do alagamento
nas terras ribeirinhas, do incremento de fenómenos atmosféricos como recordes
de ciclos de calor, pluviosidade extrema, intensificação das tempestades e aumento
de frequência de calamidades naturais associadas. A bondade dos
programas políticos a apresentar aos eleitores deverá ser medida antes de mais,
a este respeito, pela qualidade das medidas apresentadas para a descarbonização
da sociedade e para o desenvolvimento de energias renováveis. Sendo certo que
as questões ambientais exigem medidas transnacionais – o fracasso das cimeiras
do clima, como a recentemente realizada em Glasgow, não eliminam a
imperiosidade dessas medidas –, a nível nacional medidas ambientalmente sustentáveis
são objeto de decisão política inadiável: ampliação dos transportes públicos
não alimentados por combustíveis fósseis, como o comboio e os autocarros
elétricos; encerramento das centrais elétricas alimentadas a carvão ou nafta;
desenvolvimento de formas alternativas de energia, eólica ou solar; proteção e
regeneração das fontes aquíferas; apoio à investigação para a transformação da
produção económica; mudança do paradigma do desenvolvimento a qualquer custo
pelo do equilíbrio ambiental.
Em segundo lugar, a defesa do património
edificado exige uma nova política cultural. Se é verdade que
Portugal possui uma legislação de proteção do património de boa qualidade,
bastante abrangente no seu articulado e orientada por princípios adequados a
uma preservação e uso dos edifício, bens e sítios qualificados, também é certo
que entre a lei escrita e a prática social há um abismo significativo. Deste
modo, por todo o país tem vindo a degradar-se parte significativa do património
edificado, sendo em Braga os casos mais recentes o do Recolhimento das
Convertidas, a de edifícios senhoriais como a Casa da Naia ou a degradação das
ruas antigas com destruição de fachadas e interiores de casas do final do
século XIX e princípio do século XX (por exemplo, na Rua de São Vicente) e,
também, a urbanização do
interior de quarteirões.
A
defesa e preservação do património, sendo tarefa de toda a sociedade, exige,
todavia, um esforço público significativo. O último orçamento do Estado
aprovado (o de 2021) atribuiu à Cultura (descontando as verbas da RTP) uma
percentagem global de 0.21%! É desta verba muito reduzida que se deduzem as
despesas com o apoio à atividade cultural e criativa, a manutenção dos museus
públicos e a regeneração e proteção do património. O mínimo que seria de exigir
num país moderno deveria ser o de um euro por cada cem gastos naquelas
atividades. A inscrição deste objetivo, de forma progressiva e no horizonte de
uma legislatura, deveria fazer parte dos programas partidários.
Mas
não é apenas de apoio financeiro que o património edificado carece. O sentido
do usufruto desse património é também um ponto fulcral de um mandato político.
Neste aspeto, três questões têm vindo a sobrelevar na agenda política
recente.
A
primeira, diz respeito à tendência para a turistificação do património e
para a assunção das cidades e sítios como “marca”. Trata-se de uma efetiva
desvalorização das dimensões simbólicas, emocionais e cidadãs do património –
isto é de tudo aquilo que no património edificado se estabelece como marca
identitária e de reconhecimento comum – pela sua substituição pelo valor
mercantil de troca. É isso que leva à alienação de edifícios e bens para
usufruto exclusivo de privados, usualmente com elevado poder económico. É o
caso, por exemplo, da transformação de castelos, palácios e outros edifícios
qualificados em hotéis de luxo, de acesso restrito (em Braga, um exemplo é o do
edificio neo-clássico do antigo hospital de São Marcos). Se isso pode garantir
a sustentabilidade económica, o preço a pagar é insuportavelmente elevado:
trata-se de dar a poucos o usufruto do que deveria ser de todos.
A
segunda tem a ver com a sacralização do património, por ser legado do
passado. Ora, este é imperfeito, como todo o processo humano o é. Não faz sentido
considerar como imutável todo o legado que vem de trás, por esse simples
efeito. Não podemos deixar de considerar nefasto o que resiste de contextos
como ao da Inquisição, do colonialismo ou do fascismo. Nesse sentido, a
reapreciação crítica do património associado a esse passado nefasto deve estar
incluída como projeto de uma política patrimonial contemporânea. A história é
uma construção social e o património algo continuamente reapreciável, o que
coloca como objetivo indispensável o seu estudo crítico. Esta é também uma
tarefa a ser exercida pelo Estado.
A terceira incide na versão redutora do
património como coleção de monumentos. Se a ideia do património
imaterial evidencia como é importante considerar as formas populares de
construção da sociabilidade humana, que nos vem do passado (para quando a
candidatura do património comum da humanidade imaterial do artesanato minhoto,
do furado de Barcelos aos lenços de namorados de Guimarães, passando pelos
cordofones bracarenses? igualmente importante é a preservação das paisagens,
das praças e das ruas urbanas, das árvores e das casas que nos identificam e
estabelecem um horizonte comum de referência e de pertença. Manter, preservar,
estudar e usufruir tudo isto implica obstruir a sua apropriação privatística e impedir
que o descaso, a indiferença, a especulação ou a ganância o destrua.
Um mandato político para o património não
pode, finalmente, deixar de considerar o papel essencial que o movimento
associativo representa nesta frente tão importante da vida democrática. A ASPA
acredita ser testemunho vivo dessa procura de caminhos comuns pela defesa,
preservação, estudo e disponibilização ao usufruto de todos do património
natural e cultural. Tomara que o novo ciclo político possa constituir uma nova
era para a sustentabilidade ambiental e a democratização cultural.
Votos
de um Ano de 2022 com boa saúde, ambiente sustentável e cultura.
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